Brother
- A Máfia Yakuza em Los Angeles,
de Takeshi Kitano
Brother,
Japão/EUA, 2000
E lá estamos nós de novo:
um personagem suicida, tão acostumado à rotina de violência
que a vida não faz mais o menor sentido; um balé de balas
e sangue coroando cada luta de quadrilhas; uma crueldade ímpar
na execução dos golpes; e, mesmo dentro de todo esse universo,
um espaço para mostrar que, ao mesmo tempo, trata-se sempre de
crianças, de jogos de criancice; e, por último, a praia,
terreno simbólico máximo da amizade e da (pequena) felicidade.
Sabemos que estamos num filme de Takeshi Kitano.
Depois de Hana Bi, fecha-se um ciclo.
Em Kikujiro (Verão Feliz, lançado ano passado
no cinema) e Brother, já não dá pra esperar
algo da grandeza dos filmes anteriores de Kitano (Sonatine e Jugatsu
principalmente). Em seus dois últimos filmes, tal qual seus
personagens à beira da praia, o autor de Cenas de Praia
pede licença para respirar. Mas isso faz de Brother um filme
solto, deslocado? Não, certamente. Assistir a um filme de Takeshi
Kitano ainda é uma experiência como poucas, extraordinária
pelo modo como ele consegue operar a linguagem de seus filmes, como consegue
instaurar um ambiente alegremente fatal, como consegue transmitir um terrível
sentimento de debilidade do corpo humano. Em qualquer um de seus filmes,
Kitano enfrenta a morte cara a cara, com a frieza que lhe é peculiar,
sem religiosidade ou temor, e diz a ela, como Roberto Carlos: "pode vir
quente que eu estou fervendo" (aliás, fervendo que está
na tradução americana de Jugatsu: Boiling Point).
Começo do filme: uma briga entre famílias
yakuza obriga Aniki (Kitano) a sair do Japão. Ele vai então
à Califórnia, à procura de seu meio-irmão
Ken (Claude Maki). Curioso processo de aclimatação, Kitano
não mostra nenhum plano turístico das terras californianas,
não prepara terreno nenhum para a chegada de Aniki. Pois não
se trata, definitivamente, de um lugar diferente. O lugar, mais propriamente,
se dá de forma mental: se se está no inferno, o inferno
é em qualquer lugar. Então Aniki vai fazer na Califórnia
justamente o que fazia em Tokyo: criar uma família, dominar o controle
da máfia da região, formar um sólido grupo, bater
em gente sem educação e assassinar muitos gângsteres
inimigos. Sua primeira ação em terras iânques já
nos mostra: sem querer, esbarra num negão 2X3 (Denny, o ator Omar
Epps) e derruba sua garrafa de vinho. Aos gritos e ameaças do adversário
(que Aniki efetivamente não entende: ele ficará o filme
inteiro sem saber inglês), Kitano simplesmente pega no chão
o gargalo da garrafa quebrada e enfia sem dó nem piedade no olho
do gigante impassível. A cena é filmada tão mais
violentamente porque a cena final nós vemos do ponto de vista subjetivo
de Denny, de modo que Kitano dirige-se diretamente à câmera
com o gargalo na mão.
O gesto de Kitano, por mais gratuito que
possa parecer, dá a exata dimensão daquilo que ele pretende
fazer com a violência em seus filmes. Jamais um elogio, jamais uma
estilização. Mata-se a torto e a direito, e mesmo que as
imagens sejam belas e faça-se rir a partir delas, a função
de tanto derramamento de sangue em seus filmes é sempre atingida:
a fragilidade da existência humana e a gratuidade absurda da violência
sempre saltam da tela e vão parar bem onde Kitano deseja: na cabeça
do espectador. O desprevenido, coitado, fica terrificado: acostumado a
filmes de máfia americanos, onde se apresenta ao menos algum herói
para ele se identificar, ele não encontrará refúgio
dentro dos personagens de Brother. Se Aniki é acompanhado
ao longo do filme, nem por isso ele é exemplo. Comete ações
de uma violência inexplicável, é amargo, cínico
e desesperançoso.
Voltemos à narrativa: Aniki encontra
seu irmão, Ken, praticando pequenos delitos, servindo de "avião"
junto com seus colegas (entre os quais, o Denny atingido pela garrafa)
para os grandes traficantes locais. E quem são os amigos de Ken?
Negros, chicanos. Todos, claro, com ginga de jogadores de basquete e vocabulário
de rappers. Hibridismo cultural? Kitano faz o máximo para aproveitar-se
da situação inusitada e, tal qual antropólogo, diverte-se
muito em amplificar esse hibridismo para o espectador. O tema do filme,
inclusive, vai se revelando outro. Na verdade, tanto a viagem aos EUA
como o título, o motivo da viagem, o irmão, são pretextos:
o filme tratará, antes, do encontro e da amizade entre Omar Epps
e Kitano. Veladamente.
Aos poucos, Aniki vai criando um pequeno
império. Negocia à base de bala com os traficantes (numa
cena, brinca com o fato de não saber inglês: "Fucking japs
eu consigo entender"), arma e disciplina o irmão e os amigos, reúne
os japoneses que consegue encontrar... em breve espaço de tempo,
monta uma pequena yakuza na Califórnia. Mas uma yakuza mambembe,
uma máfia que não está baseada no sangue e na raça
(como a italiana). Ao contrário, a máfia de Aniki é
o resgate de todas as minorias da América, a resposta sangrenta
ao preconceito a negros, chicanos e orientais, sem chance no mercado de
trabalho a não ser como garçons ou artistas pé-de-chinelo.
Mas o grupo de Kitano, quem já viu um de seus filmes conhece: se
define menos pelas ações que realiza do que pelo hiato entre
elas: nele eles podem jogar basquete (em cenas hilárias de Susumu
Terajima, ator-fetiche de Kitano) ou brincar de futebol americano, conversar
sem se entender (em belas cenas que lembram Ghost Dog de Jim Jarmusch)
e jogar a dinheiro e trapaças.
A grande beleza do filme sustenta-se tanto
pelo modo impassível com que a câmera da Kitano responde
a tanta violência, aos apurados movimentos desta que sempre querem
significar alguma coisa (é só lembrar-se do primeiro plano
nos EUA, a câmera em diagonal que lentamente ajusta-se e filma a
chegada de Kitano no aeroporto à maneira "correta"), quanto pela
verdadeira démarche do filme, a descoberta de um "irmão"
fora dos circuitos de sangue, de raça, e dentro da afinidade de
espírito. Na seqüência final, a máfia mambembe
desbaratada, Denny e Aniki fogem. Eles serão perseguidos até
a morte. Aniki, em mostra de fraternidade, pára num saloon bem
à americana para enganar os perseguidores. E deixa com Denny um
presente que só se revelará ao final do filme. O último
plano, então, é digno de antologia: Omar Epps, sozinho no
carro, compreende a declaração de eterna amizade que Aniki,
já longe na estrada, havia lhe concedido. O ator vai do choro à
extrema felicidade, não sem falar dezenas de palavrões (está
cheio deles no filme), com uma ternura e um – mais uma vez – hibridismo
de sentimentos caro aos filmes de Kitano. Ao final, a descoberta: no cinema
de Takeshi Kitano, contam muito pouco as ações. O que sempre
sobressai é a maneira com que se espera a chegada da morte. De
preferência, entre amigos. Entre irmãos.
Ruy Gardnier
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