Falcão Negro em Perigo,
de Ridley Scott

Black Hawk down, EUA, 2001


Seria possível desenvolver um longo diagnóstico sobre as formulações ideológicas que se entrecruzam nesse novo objeto bélico lançados às telas por Ridley Scott. Tomando como referência as ainda imensuráveis conseqüências do 11 de Setembro, podemos observar em Falcão Negro em Perigo um apontamento para o que talvez venha a ser um novo ciclo no cinema de guerra hollywoodiano. Depois das críticas dos anos 70, da crise dos anos 80 e do enfraquecimento da figura do herói síntese (Rambo e afins...), o cinema de guerra norte-americano se caracterizou com uma enfadonho meaculpa nos anos 90. A tentativa de se mostrar a fragilidade da figura do soldado diante do todo da guerra tomou proporções de grande espetáculo realista em O Resgate do Soldado Ryan. A ausência da figura do inimigo maior (a depredada URSS) parecia permitir aos EUA mais um momento de auto-reflexão sobre seu papel de heróico no século XX – inclusive em filmes microcósmicos como os badalados e oscarizáveis Magnólia e Beleza Americana.

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Agora, porém, sob a sombra do terrorismo, depois dos atentados de Setembro de 2001, uma questão estava no ar: como os americanos e o cinema dos grandes estúdios iriam reagir à realização de filmes violentos, de batalhas e explosões – de violência?...O mito do heroísmo intangível dos EUA ainda seria possível? Alguns disseram que não. Outros que sim. O Falcão de Ridley Scott (e não podemos esquecer do papel de Bruckheimer na produção) veio responder em parte a essa pergunta. E a resposta é ainda mais instigante:

Não, não há mais espaço para um renascimento do heroísmo personalizado típico dos Rambos da vida. Depois do 11 de Setembro, não há mais a possibilidade do mito intangível do grande irmão americano. Mas, e então, o cinema norte-americano poderia se encaminhar para um retrato desencantado diante dos mitos do poderio e da invencibilidade norte-americanas? Não.

Seguindo o mesmo modelo dos contra-ataques norte-americanos no Afeganistão, Falcão Negro em Perigo é uma poderosa ferramenta de reformulação dos fatos:

Ao assumir a possibilidade da derrota, Scott não recua no discurso do dever militarista norte-americano, mas reafirma-o através da auto-indulgência. Todo o filme é uma reafirmação do dever norte-americano do policiamento global, mas uma reafirmação que assimila a possibilidade da derrota e do sofrimento, da perda de homens em terrenos hostis. Como que já se preparando para as futuras baixas em terras afegãs, Falcão traz uma noção de guerra que se reconfigura diante dos paradigmas de heroísmo.

Não há mais a figura do herói intocado, pelo contrário, reafirma-se a cada cena a possibilidade da fragilidade daqueles soldados (dando ênfase aos ferimentos grotescos e às mortes brutais). Dessa forma, o filme assume a brutalidade da guerra como uma pré-defesa diante de possíveis críticas. Mais: transforma esse sofrimento particular em eventos dentro de um grande feito maior e impessoal: a guerra, a necessidade da vitória final.

Desde o início, Falcão assume seu didatismo atrelado ao papel de fato histórico, gerando assim uma narrativa que não se propõe a contar a história de indivíduos, mas de um corpo, de um conjunto de homens que representa um todo homogêneo: o exército dos EUA. Lembrando ao longe algumas produções da Alemanha nazista e da URSS Stalinista, o filme de Scott surpreende por não se tratar da história de um herói, ou de poucos heróis, mas do Heroísmo contido naquela ação militar. Sobrevoando o personalismo, a narrativa não se prende a rostos específicos, não desenha personalidades, não se preocupa com o passado ou o presente dos personagens. Meros figurantes de um evento muito mais importante do que eles, os soldados se misturam aos tiros e à batalha, são apenas elementos de uma grande ópera maior: a batalha de Mogadício.

O que para alguns críticos parece ter sido um defeito do filme (falta de identificação subjetiva com as personagens) na verdade me parece ser justamente seu maior Efeito: o filme não aposta na identificação individual pois justamente não é de homens que ele fala. Mas de soldados, de um corpo militar. Há sim um personagem central no filme, que passa por crises e dá a volta por cima num final reformulado: o Exército Americano. É o Exército quem tem sua personalidade posta em prova, quem entra em crise diante de suas impossibilidades, diante das hordas de Somalianos... Scott consegue o que parecia impossível: mostrar de forma cruel o sofrimento personalizado de certos soldados e fazer de seu filme uma ode à "guerra pela paz" norte-americana. Por que não se trata se pessoas, mas de uma ideologia maior, mais importante, que rege o filme.

Aos gritos de dor dos soldados americanos, se junta a música em temas africanos misturados com ruídos de helicópteros e metralhadoras: é a música da guerra, das máquinas. Saímos do filme tendo aprendido ao menos uma dezena de nomes de armamentos e de transportes de guerra. O próprio título do filme (o nome de um helicóptero)já anunciava que suas estrelas não eram exatamente os Ryans da vida. Se Spielberg fez de seu filme um conto moral sobre o indivíduo e o heroísmo individual diante da Guerra, Scott faz o inverso e consegue, curiosamente, um resultado tão imoral quanto mais marcante.

Ao assumir abertamente a ideologia da Guerra como ferramenta de manutenção da paz e da ordem, Scott surpreende aqueles que esperavam qualquer tipo de reflexão auto-crítica sobre o papel dos EUA na ordem global. Nada disso: o filme deixa de lado as questões morais e parte para a defesa pragmática da guerra: não há mais um questionamento sobre o papel moral da guerra, mas uma aceitação de seus erros e uma afirmação fria de sua necessidade. Ninguém quer ser herói, ninguém pode ser herói...simplesmente "acontece" – diz o personagem mais acompanhado no filme. A guerra de Scott deixa de ser bela, deixa de ser heróica...Na guerra de Scott, esse tipo de questão moral é abstraída para uma defesa direta de sua necessidade como última alternativa para a manutenção da ordem. Como um poder de polícia, os EUA não mais se colocam como detentores de valores específicos a serem espalhados pelo mundo, mas defensores de valores universais "humanos" sobre os quais não se precisa pensar, somente defender, agir.

Essa sabedoria imparcial americana nos remonta ao imperialismo mais arcaico e se mostra na tela nas figuras animalizadas dos Somalianos. Como os Orcs de O Senhor dos Anéis, os moradores de Mogadício são apresentados como uma horda de figuras negras brilhantes ao sol (a fotografia é constrangedora...), lembrando os estereótipos de gangues americanas de negros. Aproveitando da sonoridade das línguas locais, o filme faz de suas vozes, um emaranhado de grunhidos e gestos bruscos. A cidade é como um inferno, onde os soldados dos EUA são anjos enviados para salvar os próprios demônios. Em nenhum momento é pensado o porquê daqueles civis estarem lançando pedras contra aqueles que vêm "salvá-los". A repetição das cenas de batalha e dos nomes dos armamentos é um indício maior de que o filme, narrativamente, não se importa com o tempo dramatúrgico das personagens, mas apenas no timing do evento como um todo. Saímos da sala de cinema com os ruídos das metralhadoras e as explosões das RPGs (aprendi vendo o filme...) ecoando nos ouvidos...

Quando uma figura popular e intelectualizada como Larry King vem a público dizer que Falcão Negro é o melhor filme que ele já viu, o argumento de que o filme não "funciona" por falta de personagens centrais, cai por terra. O que me parece é que Ridley Scott pode sim ter iniciado um novo modelo de retrato da Guerra no cinema norte-americano. Um modelo que sabe não só assumir os erros como fazer deles apenas manchas na corrida vitoriosa de seus soldados. Quando os corpos feridos são transformados numa grande massa ideológica, a morte de alguns parece ser revalorizada diante de um valor ainda maior, de um dever de liberdade.

E se a vida de bons americanos pode ser perdida para a conquista de objetivos tão nobres... que dirão da vida de Somalianos hostis? De Afegãos violentos?

A fila de inimigos também se homogeiniza: perdem suas particularidades e se transformam em meros obstáculos. Terroristas são como criminosos. Terroristas são apenas contra... e só. Americanos são como a polícia... Os pragmáticos defensores de nossos valores.

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Ridley Scott prepara o olhar americano médio para as atrocidades da guerra por vir. Desmistificando o heroísmo cristalino da 2a Guerra (fragilizado pelo trauma do Vietnam) na forma suja de um heroísmo dolorido, um sacrifício humano diante de um perigo sem rosto e absoluto. Um filme assustador, que aposta numa dramaturgia diferenciada e que pode ser o sinal para toda uma nova e perigosa safra de filmes...

Ouço agora a notícia de que G.W. Bush pretende usar armas nucleares contra os terroristas de todo o mundo. Absurdo? A questão agora não é mais essa. Bush, assim como Scott, assume que se trata de uma brutalidade, de um ato extremo, mas retruca...é uma brutalidade necessária...uma brutalidade que não se quer, que não se deseja...mas que, simplesmente, acontece.

Felipe Bragança