Violação de Conduta, de John McTiernan

Basic, EUA, 2003


Tempestade. Um helicóptero sobrevoa uma densa e escura floresta da América Central. O sádico e autoritário sargento West (Samuel L. Jackson, cuja voz já se fizera reconhecível em off desde o início da cena) dita as regras da "brincadeira" para os soldados que se preparam para descer por uma corda e se embrenhar pela floresta. É de se pensar: John McTiernan retornou ao cenário do primeiro Predador. Uma elipse, entretanto, transporta o filme para um ponto em que já foi consumada uma série de fatos enigmáticos, incluindo a morte de quase todo o time que desceu do helicóptero. Do treinamento que terminou em matança, apenas dois sobreviventes, duas testemunhas mudas, que não querem ou não conseguem colaborar. Entra em ação Tom Hardy (John Travolta), ex-oficial do exército que carrega má fama (alcoolismo, acusação de corrupção) e atualmente pertence à divisão de narcóticos. Cabe a ele que, apesar da reputação controversa, tem habilidade como interrogador, e a Julia Osborne (Connie Nielsen), uma jovem recruta bastante aplicada, a condução da investigação.

Através dos depoimentos, o filme tentará restituir aquela elipse, aquele elo perdido entre a descida dos soldados e a cena em que um já atira contra o outro. Uma questão primordialmente cinematográfica. O filme não voltará à selva senão por intermédio de depoimentos das testemunhas, ou seja, de versões, de meias-verdades, tudo de que uma narrativa precisa para se preencher de reviravoltas e redirecionamentos. Onde a opção do roteiro por um tema sério (ética e conduta militar, narcotráfico, política internacional – ação do exército norte-americano nos arredores do canal do Panamá) ameaça trazer alguma mensagem forte, pouco a pouco se vê que o objetivo principal é a encenação de um jogo. Da mesma forma que a cada testemunha cabe uma verdade, ao filme pertence a liberdade de mostrar o que bem entende – ou não mostrar. Se há uma denúncia em Violação de Conduta, ela está menos na ação dos militares que no discurso (podendo este ser expandido a toda uma imagem vendida por um país em guerra ao resto do mundo – e aqui McTiernan estaria sendo aquele auteur politizado de que uns falam seriamente e outros debocham) que posteriormente pode ser elaborado em cima dessa ação. Aquela elipse, aquele ponto nevrálgico em que ocorreram as mortes, estará nas mãos do articulador do discurso, que ali depositará sua versão: mortes acidentais, mortes propositais, briga por dinheiro ou por drogas, rivalidades pessoais.

Violação de Conduta é um filme mais de diálogo que de ação. Mas são diálogos contundentes, com frases de efeito, com trocas de gestos e olhares que podem a qualquer momento mudar o rumo da narrativa (tal como em Duro de Matar 3, outro filme de McTiernan com Samuel L. Jackson no elenco). Câmera e atores movidos por um desejo do diretor de encadear artifícios retóricos e resolvê-los no próprio pôr-se-em-cena. A retórica dos personagens e a da câmera se confundem, jogam no mesmo lado. Todo e qualquer diálogo em Violação de Conduta é uma questão de cinema a ser resolvida com precisos lances de mise-en-scène. Suas imagens são peças de artesanato, feitas com o cuidado e a precisão de quem já domina o ofício. Tom Hardy conversa com Julia Osborne e há no mínimo três tonalidades de cor dividindo o quadro: uma luz vermelha sobre os rostos, uma amarela no canto esquerdo, uma azul passando por entre as venezianas, além de flashes dos faróis de carros e aviões que circulam na base militar onde a maior parte do filme se passa. Com discrição e maestria, McTiernan fez um filme-recreação. São as charadas e o gosto pela celebração (acrescida de uma saborosa pitada de desconstrução) da própria "lógica interna" do filme de aventura que movem Violação de Conduta. É o John McTiernan de O Último Grande Herói, obra-prima injustiçada, que está aqui de volta, em menor grau de metalinguagem, obviamente, mas com o mesmo interesse declarado pelos jogos de cena e de narrativa.

O filme de roteiro engenhoso representa uma parcela considerável do cinema de ação contemporâneo. Não à toa os trapaceiros estão em alta: Nove Rainhas, Onze Homens e um Segredo, O Assalto, The Good Thief, Confidence. Um personagem que ludibria o outro, um filme que ludibria o espectador. Também não falta a esses filmes uma linguagem visual ágil e estilizada. Os roteiros filmados por McTiernan já possuíam gráficos oscilatórios, cheios de traições e truques, desde Duro de Matar. Em Violação de Conduta, contudo, a busca pela grande surpresa final, a grande revelação, está pormenorizada: McTiernan não aposta nessa verdade que cintila no fim do túnel. Seu filme não leva tão a sério o ponto de chegada, a resolução do enlace narrativo, mas antes valoriza o processo, a tensão entre os pólos de farsa e honestidade, confiança e desconfiança (como fazem também os outros, mas há de se admitir que neles o desfecho não só é crucial como chega, por vezes, a querer "validar" o filme). Ele faz agora o que sempre fez: assume o velho jogo, mas repensando as regras e os métodos.

A oposição "básica" endereçada ao par central do filme (John Travolta/Collie Nielsen) está no cerne das questões levantadas por McTiernan. De um lado a busca pela verdade por meios claros, a pureza de princípios da personagem de Nielsen. De outro o disfarce, a malandragem de Travolta à frente do "grupo dos oito". E entre os dois se desenvolve um embate de condutas que naturalmente se transforma em jogo de sedução: ao pensar suas próprias formas (de narrativa, de imagem, de encenação), McTiernan alcança um local de atrito (reconstituição de fatos versus elogio da mentira, limpidez versus saturação, desvendamento versus ocultação) que logo se desdobra em convite à cumplicidade (do que a cena-resumo é a piscadela de Tom Hardy para uma Julia Osborne ainda perplexa após descobrir que ele, West e outros mais estavam apenas disfarçados para desvendar uma operação ilegal no alto escalão dos oficiais).

Muitas das imagens de Violação de Conduta são confusas e saturadas (de cores, de signos). Imagens de difícil legibilidade, que ou se contrapõem à vontade do roteiro de querer ser entendido, ou justamente corroboram uma idéia de não-verdade, de retalhos de contos que não querem promover uma leitura definitiva (e o cinema seria mais um desses contos). Como a cena de uma festa popular no final do filme confirma, trata-se de um desfile carnavalesco: cores, ritmos, flertes, fantasias, máscaras, mescla de luxo e grotesco (a cena de um soldado morrendo envenenado, após vomitar sangue). A operação de treinamento fracassada que compõe a base do roteiro de Violação de Conduta metonimiza o cinema de John McTiernan: é da simulação, da ambigüidade e do caos que ele retira a força expressiva da qual tem saído grandes filmes já há algum tempo.

Luiz Carlos Oliveira Jr.