A
Hora do Show,
de Spike Lee
Bamboozled,
EUA, 2001
O discurso de Spike Lee no que se refere ao tema do racismo sempre foi
direto e radical. Tanto é assim, que já se criou até
um estereótipo dele como um racista às avessas, ou seja,
de um homem cujo ódio pela raça branca o torna igual aos
racistas de uma Klu Klux Klan. É claro que isso é um exagero,
para não dizer uma mentira, e as diferenças são inúmeras:
primeiro nunca se ouviu falar de Lee defendendo a morte de ninguém,
segundo que não se pode dizer que o ódio branco possui algum
motivo sensato enquanto um ressentimento negro é até compreensível.
Mas, talvez a principal diferença seja a capacidade de Lee inserir-se
no seu próprio discurso com auto-crítica e muito bom humor
no meio de sua raiva. Isso, os supremacistas brancos nunca tiveram. Logo
no início deste filme um personagem de discurso racista diz "O
Spike Lee pode dizer o que ele quiser..."
No meio de uma obra
já acentuadamente radical, muito se disse que este A Hora do
Show seria seu golpe mais duro. Se assim parece não é
nem tanto pelo filme em si, mas acima de tudo pelo assunto escolhido.
Ou seja, ele opta por tematizar frontalmente a questão da discriminação
na sociedade moderna, fazer disso a força motriz do seu filme.
Mas, quando se pensa que um discurso cinematográfico não
se compõe só do que se diz, mas também de como se
diz, é impossível julgar este filme mais forte do que um
Faça a Coisa Certa (que ainda hoje parece um filme moderno)
ou mesmo um Malcolm X, que tinha a coragem de fazer um épico
sobre uma figura histórica não apenas negra, mas profundamente
controversa.
O que mais choca no
novo filme do cineasta é seu discurso extremamente ácido,
que muitas vezes trafega pelo cinismo, destilando um rancor e ao mesmo
tempo uma desesperança profundas com as possibilidades de bater
o sistema de dentro dele. Spike critica os brancos, os negros que se vendem,
e até mesmo os negros que enfrentam o sistema sem formar uma ideologia
concreta. Desde o início do filme, o personagem principal deixa
claro que o tom vai ser o da sátira, já que ele começa
definindo o que seja esta. E dentro deste registro, ele constrói
o filme como talvez um conto de fadas moderno às avessas, onde
não há heróis.
A energia que emana
do filme, uma raiva apaixonada, é sem dúvida seu maior atributo,
enquanto a trilha sonora talvez seja o mais feliz dos aspectos técnicos,
pois sua onipresença ajuda muito em criar o clima de um conto,
de uma fábula, extremamente desesperançosa. Talvez o grande
pecado de Lee seja lá pela hora final do filme desrespeitar um
pouco as regras que ele mesmo havia proposto, trocando o tom da sátira
de protesto por um acompanhamento mais naturalista-psicológico
das relações entre os personagens. Despreparado para achar
relevante estes dramas que considerava menores até então,
o espectador pode se sentir um pouco alijado do filme, e sente mais os
minutos passarem. Mas não é nada que o final não
faça diminuir na memória com dois artifícios brilhantes:
o uso das cenas de arquivo de TV e cinema com representações
do racismo, e os brinquedos de cunho racista que vão se acumulando
no escritório do protagonista e que tomam os créditos finais.
Fica inclusive um desejo do espectador conhecer melhor ambos, conjecturando
as possibilidades de um documentário somente sobre estes temas.
O veredito final é
que este não é o melhor filme de Lee, como quiseram alguns,
mas muito menos não representa um passo em falso, pelo contrário.
É uma pedra a mais na construção de uma obra altamente
coerente, e diversa esteticamente, mostrando que um tema não existe
somente com uma forma.
Eduardo Valente
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