Baladas, Rachas e um Louco de Kilt,
de Ronny Yu


The 51st State, EUA/Canadá/Inglaterra, 2001

Que fique bem claro: Baladas, Rachas e um Louco de Kilt trabalha tipos e não personagens psicologicamente elaborados. Até aí, nenhum problema – Kulechov, Eisenstein e todo o formalismo russo tinham entre suas premissas a construção tipológica dos personagens. A primeira cena de Baladas..., por exemplo, é um breve prólogo decalcado da blaxploitation do início dos anos 70 (e a cena se passa mesmo em 1971). Nessa cena, Elmo (Samuel L. Jackson, que foi ator de outros dois filmes claramente referenciais à blaxploitation: Jackie Brown e o remake de Shaft) fuma maconha e dirige rumo à Califórnia, ainda vestido com parte da roupa de sua formatura em Farmacologia. Com cabelo black-power e trajes ultracoloridos por baixo da beca, ele acaba sendo parado por um policial que aceita dar uma longa tragada em seu baseado. O diálogo entre os dois, além de ser tão surreal quanto hilário, já deixa clara a proposta do filme de partir dos mais óbvios estereótipos e reconfigurá-los através dos menos óbvios argumentos.

Contracampo veio destacando, ao longo de 2003, a tendência dos blockbusters de tirar proveito cada vez maior da espessura iconológica construída por algumas décadas de cultura pop (basta ler as críticas de As Panteras Detonando, + Velozes + Furiosos, Violação de Conduta). Surge, então, o hiper-clichê, o signo de leitura imediata, que abrevia de forma bastante eficiente as duas etapas-chave da significação fílmica (mostrar e fazer sentido). Baudrillard já havia afirmado que o pós-modernismo dera origem a uma nova categoria de valor, uma espécie de valor fractal, que opera pela indiferença. Distantes de sua origem, de sua idéia formadora, os signos dessa cultura da indiferença funcionam ainda melhor. E o processo aqui em jogo é justamente esse: automatizar a resposta. Os planos de Baladas, Rachas e um Louco de Kilt podem durar uma fração de segundo não só por motivações estéticas, mas também porque não exigem mais que isso para sua leitura. Um filme ágil em todos os aspectos – mise-en-scène, diálogos, montagem, edição de som (o número de silêncios cabe nos dedos de uma mão). Agilidade que não impede a inclusão de verdadeiros parênteses narrativos (a cena no bar com a torcida do Manchester United, pura provocação cômica, é um bom exemplo) – e que não equivale a conduzir o filme a marteladas. Há um ritmo bem dosado em Baladas, Rachas e um Louco de Kilt (ok, talvez a versão brasileira do título não precisasse de tanto).

Elmo, o "louco de kilt", representa o curto-circuito na lógica de hiper-clichê abordada pelo filme: o que um negro americano com trancinhas no cabelo estaria fazendo de saia escocesa? Mas todo o resto se resume a tipologias conhecidas: o inglês fanático por futebol, a femme fatale, os skinheads, o vilão de cicatriz no rosto, o clubber, o guru esotérico, o policial corrupto e seu parceiro abobalhado. Todos envolvidos numa trama razoavelmente simples, sem muita reviravolta ou ambigüidade narrativa. E o fato da figura híbrida de Elmo ser apresentada em meio às outras como se fosse somente mais uma delas e prescindisse de qualquer explicação (ou ainda, como se essa explicação pertencesse a um imaginário que precede o filme) é o que garante seu funcionamento.

O filme, que se passa em Liverpool (a Inglaterra, apenas o "qüinquagésimo primeiro estado dos EUA", como diz um dos vilões), certamente manipula bem seus clichês e seu esquema de ação, sem nunca cansar ou soar repetitivo. Ronny Yu filmou boas cenas de ação e boas gags, além de uma excelente seqüência dentro de uma rave que culmina com a invasão da polícia e o genial protesto de Elmo ("Será que um brother não pode vender umas malditas drogas em paz?", com a já clássica entonação de Samuel L. Jackson). Um pouco antes, Elmo discursava para a multidão presente na rave dizendo que, quarenta anos depois dos Beatles, Liverpool assistiria a uma nova revolução – ele falava de uma droga supostamente magnífica que havia criado. O filme está indiferente à discussão moral em torno das drogas. Tudo que ouvimos delas diz respeito à sua capacidade de nos levar à estratosfera, de curar traumas de infância, de pacificar o ambiente, de divertir. Discurso para a massa de jovens que se espreme na pista de dança e não alimenta nenhuma utopia, apenas faz circular os fluxos indistintos oriundos de liberações pregressas (o sexo, as drogas). Antes de julgar essa geração, o filme é feito para ela: com sua velocidade, seus ícones, suas músicas.

Na cena de maior escatologia, quando Elmo fabrica uma pílula de superpurgante e a entrega ao grupo de skinheads dizendo que é a droga do momento, e estes simplesmente rolam pelo chão se esvaindo em diarréia, a montagem não deixará de compor uma metáfora visual, intercalando as imagens dos skins com um breve plano de porcos sujos de lama – e aqui o parentesco com a escola de montagem russa se torna bastante irônico, uma vez que Baladas, Rachas e um Louco de Kilt é um filme onde realmente reina a indiferença (política, estética, social). Dizer que ele é sem pé nem cabeça, porém, é afirmar o triunfo de sua missão (cumprida).

Se há uma revelação no filme é a de que a droga milionária criada por Elmo não passa de um placebo. Testada em sua composição química, ela parece perfeita – mas uma substância anula o efeito da outra, e no fim das contas é só a imagem da perfeição o que resta. Pelo fato do mundo confiar nessa imagem, mais até do que num efeito fisiológico, Elmo pôde ludibriá-lo facilmente. Não à toa a fórmula mágica está escrita no verso de uma fotografia: tanto de um lado (imagem) quanto do outro (a tal fórmula) reside uma nulidade. Mas Baladas... não ludibria ninguém, é diversão clara e descompromissada, sem joguinho de adivinhações ou tomadas de consciência. Não é difícil se entreter com esse filme, basta ter cuca fresca e saber se encantar com o não-novo.

Luiz Carlos Oliveira Jr.