Babilônia 2000,
de Eduardo Coutinho


Babilônia 2000, Brasil, 2001

Há poucas semanas, na abertura de um evento cinematográfico, estava Nelson Pereira dos Santos sentado numa mesa de debate. Ao ser apresentado pelo mediador, e mencionado por todos na mesa, Nelson era tratado como uma figura histórica, quase uma estátua. "Homem de um passado indiscutível", "lenda viva" e "autor de uma obra fantástica" foram algumas das expressões usadas. Enquanto isso, ali estava sentado um cineasta, com projetos e aspirações, que certamente imagina sua obra ainda em curso, e que não consegue recursos para filmar o que deseja, e cujos dois últimos filmes lançados foram no geral muito mal recebidos pela crítica e público (A Terceira Margem do Rio e Cinema de Lágrimas). A ironia da situação beirava o trágico, e se não para mais nada serviu para destacar a inutilidade, quando não a prisão, que representam a tal da "imagem pública".

Pois bem, porque isso tudo? Ano passado, Eduardo Coutinho lançou um documentário que o colocou de novo na linha de frente do cinema brasileiro, talvez o mais unanimemente elogiado filme brasileiro de 1999/2000, Santo Forte. Ele recebeu vários prêmios, críticas absolutamente positivas e até um público (relativo ao potencial costumeiro do cinema documentário) bastante satisfatório. Após alguns anos trabalhando apenas com o formato do vídeo não só como produção mas como finalização (como foi o caso com Boca do Lixo e Santa Marta), Coutinho voltava a ser considerado importante no painel do cinema, aparentemente apenas porque resolveu kinescopar um de seus trabalhos, mas verdadeiramente porque era um filme excepcional. Neste último ano, quem leu os jornais ou revistas viu Coutinho alçado à mesma condição de intocável. Se houvesse a ABIS (Academia Brasileira de Imagens e Sons), seria um imortal, cinematograficamente falando, um "highlander" do cinema nacional.

E agora, entra em cartaz Babilônia 2000, o novo filme de Coutinho. A crítica não foi menos laudatória, e é cedo para julgar a reação do público, mas pelo exemplo das pessoas na sessão a que estive presente (com aplausos no fim da projeção, sendo que era uma sessão comum, nada de festival nem pré-estréia, onde aplauso vale menos que moeda de 10 reais), dá para prever uma recepção igualmente entusiástica. Mais uma vez, matérias em todas as revistas e jornais (até a Veja falou bem... Meu Deus!!!), todas tratando Coutinho como uma divindade do Brasil, do cinema nacional, do documentário.

Tudo isso é justo até, mas duas perguntas devem ser respondidas: primeiro, será que para o artista, para seu trabalho, todas essas manifestações são positivas? Será que não podem levar a uma acomodação perigosa nos louros colhidos, ou pior, será que não podem levar a uma perda de auto-crítica? E, em segundo lugar, será que alguém está de fato vendo o filme ainda? O filme, esta entidade paradoxalmente autônoma e dependente do seu autor, do seu país, do seu tempo. Que tal ele é, de fato, o que ele indica, aonde ele nos leva, qual o efeito dele na platéia?

Foi preocupado com estas duas perguntas que eu tentei ver o filme com o maior distanciamento possível, olhar com redobrada atenção para não deixar a "febre" Coutinho me tirar o arsenal crítico. Porque estas febres são algumas das mais inúteis manifestações culturais possíveis, absolutamente emburrecedoras. E o veredito foi: o filme é muito, muito bom. De fato, é muito melhor do que os fãs de Coutinho são. Mas, infelizmente, se a sua possível compreensão como fato artístico e social está seriamente prejudicada por esta recepção, pois a aceitação prévia leva a uma predisposição que exclui de todo a reflexão, o realizador não pode ser culpado por um crime que não pode controlar.

Daí vem a idiótica recepção de vários jornalistas e críticos que batem palminha de pé, sem saber porquê. Estão deslumbrados com a "surpreendente" articulação do povo, com as "inesperadas referências culturais", com o retrato duro, mas simpático do dia a dia das favelas. Não percebem que a surpresa não é o que se diz, mas sim que eles nunca tenham escutado. Acham pitoresco aquilo tudo, parece quase um episódio do National Geographic. Na sala de cinema, a reação chega a ser patética. Assim como havia risadas das supostas "ingenuidades" do popular, sobram "OOOOHHH" e "AAAHHHH" quando uma mulher declina os verbos corretamente, quando um homem lê seu jornal e opina, quando uma outra cita Siddartha (e faz uma análise muito mais interessante do movimento hippie do que muitos sociólogos). As madames do Espaço Unibanco descobrem: "o povo é bom", como dizia Fernanda Montenegro em Tudo Bem. Quase vinte e cinco anos depois, a postura das elites é a mesma caricaturizada por Jabor. E que pena que esta seja a predominante resposta à uma obra da envergadura da de Coutinho.

Porque aquilo que não é percebido pelos que adoram o trabalho de Coutinho de uma forma vazia ("É lindo! Isso é o Brasil! Este é o nosso povo!"), é que a genialidade e a diferenciação de cada um de seus filmes virá sempre da realidade que se lhe apresenta. E que não é uma realidade fixa, mas extremamente volátil. E que, portanto não "é" nada, no máximo "está", naquele momento. E mais, ignora-se o mais brilhante trabalho do filme, que é a montagem. Não que a filmagem, com as entrevistas e suas conduções não sejam vitais. Mas é que no tipo de documentário que Coutinho realiza, o seu discurso só se estabelece de fato na mesa de montagem. Diz-se muito que Coutinho "dá voz ao povo". Isso é uma ignorância, em primeiro lugar, do funcionamento do fazer cinema, pois pode-se "dar voz ao povo" e só fazê-lo falar o que lhe interessa. Em segundo lugar, é de uma grandesíssima prepotência, porque imagina que alguém tem esse poder de "dar" (um presente...) voz ao povo. O povo sempre teve voz, sempre falou. O que Coutinho faz, e a diferença é de 100%, é ouvir o que o povo tem a dizer. Ele faz isso como entrevistador, mas acima de tudo como montador (bem entendido, como cérebro por trás da montagem e da sua concepção, já que ele não assina a edição do filme). Pois é na montagem que o diretor dá voz a si mesmo, e não ao povo. E o que Coutinho faz é tornar sua a voz do povo, e vice-versa. O que ele faz é montar o seu discurso com o cuidado de se ater ao que ouviu e viu, e não baseado numa realidade pré-existente em sua cabeça. Por isso o seu cinema é tão grandioso.

Mas, afinal, o filme é ou não é acomodado? É inegável que ele lembra muito Santo Forte. Centrado numa favela do Rio, baseado na palavra dos moradores do local, mostrados em enquadramentos simples, falando direto para a câmera. Tentando a partir desta favela abraçar uma realidade muito maior que ela mesma. Utilizando um formato onde a equipe documentadora é tão personagem quanto a documentada. De fato, há tantas semelhanças que um primeiro olhar poderia indicar até uma certa tendência ao "berço esplêndido", como se Coutinho achasse uma fórmula de sucesso e com ela se acomodasse. Mas, esta interpretação seria apressada e da fato ilógica, pois a idéia de fórmula de sucesso geralmente vem atrelada a números de Ibope ou bilheteria, e esta não é a medição do trabalho que Coutinho impõe. Em segundo lugar, e mais importante, se representa alguma coisa não é uma fórmula, e sim uma teoria de realização documental. É, portanto, uma condição prévia ao resultado de sua exibição. São tênues fronteiras entre coerência e repetição, mas basta olhar o filme para identificá-lo com a primeira.

E como é que Babilônia 2000 se insere no percurso do cinema de Coutinho? São inúmeras as articulações. A primeira e mais importante é perceber o porquê desta opção de filmagem, nem um pouco aleatória. Pensar como se articulam as opções sobre "o que filmar" na carreira de Coutinho. Com Santo Forte, Coutinho queria retratar o brasileiro no que ele tenha de mais genuíno, e neste sentido a religiosidade foi o tema escolhido não por ser uma "autêntica expressão brasileira", mas por ser aquela sobre a qual as pessoas falam com mais naturalidade. Coloque-as para falar de violência (numa favela, sob a mira dos fuzis), sobre sexo e relações, sobre futebol, e veja o que sai disso. Agora, coloque-as para falar de religião. Então com seu olhar sempre metonímico, ele partiu da religião para traçar um olhar sobre o Brasil. E agora, mais uma vez, não foi por acaso a opção. Porque o reveillon de 2000? Porque se cada fim de ano representa pensar o passado e projetar o futuro (englobando, portanto, história e processo), o do ano 2000 representava isso ao cubo. Pegue ainda a tal idéia de "fim de milênio" como tempo de mudanças, e a localização da favela do Chapéu Mangueira (atrás da praia de Copacabana, palco da grande festa popular), e o painel do Brasil, sua história e seus projetos de futuro está ali, prontinho.

E quem tiver olhos, verá, e quem tiver ouvidos, ouvirá. Verá as marcas do racismo postas às claras, desvendado de vez pela voz de quem o sofre na pele. Verá a força da estrutura patriarcal, tão profunda que os depoimentos mais machistas às vezes vêm de mulheres. Verá a relação íntima entre as favelas e o Nordeste brasileiro, nas palavras de tantas pessoas, que valem por alguns livros de História e Sociologia. Verá ainda a violência, que marca a vida de absolutamente todas as pessoas. Mas não verá isso tudo pelo viés da denúncia escandalosa não, das cenas de tiroteio. Verá com a profundidade das marcas de bala nas paredes, que parecem parte da decoração. Verá pelo homem que diz que "quando tem cinco ou seis tiros o povo entra em pânico, pois o normal é um ou dois..." Verá pelo lúcido olhar de uma velha trabalhadora doméstica que perguntava de trabalhava em "casa de família", diz que trabalhava "em casa de exploração". Apenas para no momento seguinte dizer que seus patrões eram muito bons para ela. Porque assim é o mundo: contraditório. E as pessoas não se explicam por teses fáceis de almanaque. Elas são exploradas, mas sabem. Vai ouvir a história do jovem que perde o irmão, pacato, quieto, fuzileiro, com um tiro no rosto na frente da família, e que declara aos pais que a partir daquele dia não tem mais amor à vida. O tom dos pais é triste, mas nem um pouco condenatório. Ao contrário do que nos ensinam os manuais eles deram sim casa, comida e educação ao garoto. Mas como explicar para ele o tiro na cara do irmão? E como explicar o outro homem que diz que "ali leva uma vida boa"? E os que não trocam o morro por lugar nenhum, que se ganhassem dinheiro compravam um apartamento no asfalto, alugavam e viviam de renda, no morro? Como explicar??

Não se explica, se constata e se aprende. E Coutinho aprende. Aprende e ensina. Ensina que, mesmo com tantas horas de material bruto precisando ser condensadas em pouco mais de uma hora e quinze de filme, sempre há espaço para o silêncio e o vazio, pois ele significa mais do que o clichê do que seja um "fato", mesmo no documentário. Ensina ainda que aquela gente sabe o papel que cumpre na sociedade brasileira. Por isso uma delas pergunta quando a câmera chega: "Você quer pobreza mesmo?" A sofisticação do raciocínio desta frase só se aprende no dia a dia da exploração por políticos, jornalistas, "cidadãos do bem". Assim como D. Djanira capricha no português e pergunta jocosa: "Falei bonito?" Sim, D, Djanira, a madame certamente gostou. "O povo é bom". Coutinho sabe disso. Sabe o suficiente para deixar ele decidir quando acabou o filme. É deles o "corta", numa imagem simbólica do cinema de Coutinho. E que mostra que sabe que o filme acaba, mas a vida continua, depois dele tem churrasco, tem fogos, tem até tiroteio. E que, apesar da impressão da madame só durar uma hora e quinze, o povo continua bom. E ruim. Que nem ela.

Eduardo Valente