A Vida Sobre a Terra,
de Abderrahmane Sissako


La Vie Sur Terre, Mali/França, 1999


A Vida Sobre a Terra de Abderrahmane Sissako

A Nós a Liberdade

Poucas fitas estrangeiras lançadas nos últimos nos tempos podem falar tão intimamente aos brasileiros quanto este fabuloso A Vida Sobre a Terra, episódio africano da série "2000 visto por..." que por si só já justificaria toda essa empreitada de dez filmes bancados pela TV francesa. Todos sabemos que a realidade do comércio de cinema por aqui é um fato cultural facilmente condenável – essa harmonia de mercado que garante o lugar de honra das salas aos mais variados abacaxis importados que só tem a ver com a nossa verdade porque os consumimos compulsivamente. Mas é preciso dizer, o filme de Abderrahmane Sissako desencoraja a crítica1. O veio mais produtivo do segundo cinema novo foi o terceiromundismo (à época do começo do exílio, de Fome de Amor, Terra em Transe, "A Estética da Fome", quando o cinema brasileiro exerceu saudável influência em outras culturas igualmente periféricas) e é nesta tradição que faremos mais do que bem em considerar A Vida sobre a Terra quase que como coisa nossa.

"É preciso de corpo e alma evitar a atitude estéril do espectador": não está aí resumida, em termos de comunicação, toda a luta e postura nacionalista2 tão cara a certa crítica/produção brasileira nos anos 60/70 (e que anda um bocado esquecida) nesse feliz chamado que Sissako diz em off no começo do filme? Afinal, a cultura – e por obrigação, a vida – é mais do que aquilo que se consome, é o que nos mostra a seqüência inicial no supermercado (em que as imagens do filme estão lindamente carregadas dessa alienação) e, logo depois, a volta ao país natal, à vila de Sokolo3.

Pois o tema recorrente nos filmes de Sissako, natural da Mauritânia e que hoje vive em Paris, é o tema do retorno à terra de origem, àquela "terra que faz parte do meu corpo" – essa idéia do pertencimento, do eu sou eu e mais minhas circunstâncias. Em Rostov-Luanda (exibido aqui durante o Festival do Rio) essa necessidade pessoal se traduzia na busca de um velho amigo há muito não visto; em A Vida sobre a Terra o pretexto se encontra na passagem do milênio. Mas essa é uma trajetória que não deixa de carregar consigo uma certa má consciência; apesar de serem fitas belíssimas, a dor é inevitável: e o mais belo nesses filmes talvez seja exatamente isso, é que para Sissako não há a satisfação pessoal sem uma responsabilidade social, sem uma satisfação de seu povo. Todo o dilema ético do filme está aí, em como um exilado pode servir a seu passado, a sua gente, em como intervir no terreno da política mesmo estando fora do país. O racional a serviço do afetivo.

Por isso A Vida sobre a Terra é um dos filmes mais honestos e sinceros a que podemos assistir, porque em momento algum ele foge à questão fundamental; seria ingênuo ou falso pensar que o cineasta escapa a esse quadro. É essa a profunda melancolia, toda a angústia do filme. A carta que um dos habitantes da vila dita para ser endereçada ao filho que vive na Europa, contando a dificuldade com que a família estava vivendo naquele ano e pedindo ajuda (um dos momentos mais tristes que o cinema recente pode oferecer), não há como não interpretá-la como uma carta que também está sendo endereçada ao diretor.

A Vida sobre a Terra é isso, é o contraste entre a terrível lembrança-presença da Europa e o atraso de uma África ao mesmo tempo tão rica de pessoas e tão absurdamente submetida ao massacre econômico e cultural da matriz. E a triste ironia disso tudo é exatamente o que possibilitou o filme: afinal, qual a mudança para essa África? Que ano 2000?4 Enquanto o rádio transmite notícias sobre o reveillon vindas de Paris, das festas em Tóquio e etc., em Sokolo nem mesmo o telefone funciona. Daí resulta que a ação de boa parte do filme não é propriamente uma ação, todo o imobilismo Histórico está representado na fixidez de alguns planos, em certa lentidão do ritmo, nos tempos mortos, nas cenas repetidas, nas tentativas fracassadas... "Le téléphone pour tous, c’est notre priorité", está escrito no cartaz "chapa branca" colado numa das paredes dos correios, onde está o único aparelho da cidade, que, quando funciona, é dividido por toda a gente. Aí nessas imagens está não apenas uma possível metáfora sobre a impossibilidade de comunicação estabelecida entre periferia e metrópole, sobre toda a defasagem abismal entre os dois continentes, como também se traduz de forma mais sutil o abandono pelo governo, o mesmo Estado falido que, como vamos ver, também se omite na ajuda aos agricultores no combate aos pássaros que comem boa parte das plantações.

O universalismo, neste caso, é o desejo do mesmo, a imposição do mais forte, ou seja, do domínio do branco cheiroso norte-americano e europeu. Diante da maldição de atraso e falta de perspectivas e a pretexto de forjar uma identidade, nos ensina o filme, a única atitude criadora é voltar-se para si mesmo, ser local, recriar-se artisticamente – para poder agir, é preciso planejar, e para planejar é preciso se conhecer: esta é a grande lição que se tira.

A crítica ignorante e cheia de pré-conceitos já chamou esse estilo de naturalista; nada mais equivocado. Sissako realiza aqui um realismo que nada deve ao realismo de faz-de-conta, à estética "invisível" do cinemão tradicional, em que tudo já vem devidamente mastigado para melhor impingir goela abaixo do público. Não, aqui tudo depende saudavelmente dos olhos do espectador. Nesse sentido, há uma espécie de inocência perdida em A Vida sobre a Terra: um cinema do ver com olhos livres, que busca fugir aos padrões simbólicos e também éticos implícitos nos produtos da indústria cultural. As citações de Aimé Césaire5 e a carta que Sissako escreve ao pai para contar de sua volta, por exemplo, são apenas um entre muitos outros estímulos ao público para que ele possa das imagens tirar o sentido. É esse o realismo que Bazin tanto pregava (a metáfora do espectador saltando pelas pedras sobre o riacho, pedras que são fatos deixados ali pelo diretor mas que deixam ao espírito a tarefa e a escolha do caminho a seguir para chegar à outra margem), são essas imagens simples mas profundas e extremamente vivas, que mantém o espectador consciente de estar diante de uma projeção, de um discurso, longe da alienação. Que as filmagens tenham se dado sem roteiro previamente escrito – boa parte das cenas segue o estilo "a vida de improviso" – é só o aspecto mais imediato do que quero dizer. Trata-se do simples desejo de filmar, só que filmar não simplesmente comunicando, re-condicionando o espectador (ou seja, usando os mesmos velhos códigos habitualmente repetidos), mas se expressando, de uma outra forma – isto que é importante.

Daí surge um filme que, apesar de veemente e sem concessões, não é um filme político gritado, mas sussurrado. "Eu acho que é como nas histórias de amor: quando você quer de verdade dizer algo, você o diz suavemente – é assim que o outro vai te entender, se você gritar não vai conseguir ser compreendido. Por isso que o cinema político deve ser um cinema poético, para atingir alguém"6. Dito e feito: A Vida sobre a Terra, como se pode notar na saída das sessões, é um filme de comunicação fácil, que agrada e desperta consciências. Pena que a maior parte do público jamais vai descobrir isto.

Juliano Tosi

1 Se faço esse tipo de analogia é menos por ser contra o cinema estrangeiro, como sabem os que me conhecem melhor, e mais pela maneira de nos relacionarmos com ele, distanciada e quase sempre com os filmes errados, e inevitável do achatamento cultural que daí surge. O objetivo aqui é estabelecer um sistema de troca de valores, de um plano cultural de certa forma horizontalizado, que podem dialogar e serem retransformados pelos cineastas daqui.

2 O conceito de nacionalismo vem aqui com o forte acento político – de resistência e liberação do ocupante – necessário a um país em formação de identidade.

3 Na verdade, o filme foi rodado no Mali, terra do pai de Sissako, mas, como ele mesmo explicou numa entrevista, toda aquela área pertencia ao mesmo povo antes da colonização européia.

4 E, da mesma maneira, também podemos perguntar: que 500 anos?, que motivos para comemorar? De fato, não houve muito o que se comemorar, mesmo a imprensa não teve como esconder essa verdade; mas o que ninguém pareceu notar é de onde vem a face mutilada desse nosso monstro caraíba: o suicídio cultural manifesto pela mais absoluta passividade consumidora. Quem somos nós? Onde estão nossos heróis? O leitor que tire suas conclusões.

5 Escritor martinicano que também se exilou em Paris durante sua juventude, Césaire é um dos maiores pensadores da condição do dominado e do subdesenvolvido. Por sinal, um escritor a ser descoberto entre nós; salvo engano, não há traduções de seus livros por aqui.

6 Citado de entrevista