Auto
da Compadecida,
de Guel Arraes
Auto da Compadecida,
Brasil, 2000
Xuxakespeare
ou Cinderela Bacana
O Auto da Compadecida
vem coroar a entrada definitiva da Rede Globo no mercado cinematográfico.
Depois de diversos filmes de sucesso voltados para o público infantil
que remonta à fusão dos Trapalhões com Xuxa
Meneguel nos anos 80 , finalmente chega às telas uma produção
"séria" voltada para o cinema, saída ela mesma
de uma série televisual filmada, na maior parte, em película.
Um projeto, antes de tudo, de ponta no que tange a estética da
rede de televisão: dar a direção ao chefe do núcleo
mais inventivo do canal de televisão, Guel Arraes, produtor de,
entre outros, a "Comédia da Vida Privada", série
que em muitos aspectos revolucionou a ficção televisual.
Mas é preciso
que se diga: O Auto da Compadecida é ruim, e muito. Todos
os elementos "geniais" de Guel Arraes estão lá:
dinâmica de encenação, interpretação
estilizada (como se diz em design de uma figura ilustrada apenas
em seus traços básicos), hibridismo de formato (vídeo,
cinema), de gênero (drama, comédia... e auto), a citação
e o retrabalho do clichê, etc. Acontece que essa fórmula,
que alcançou rapidamente o seu próprio clichê na televisão
há alguns anos, chega no cinema absolutamente diluída (sabe-se
previamente tudo que vai se ver) e, o pior, mal realizada: vê-se
algumas cenas filmadas às pressas em vídeo (à falta
de significação estética, percebe-se a contenção
de custos), outras de uma cenografia risível de cafona, e sobretudo
efeitos especiais sem noção do ridículo. O que pode
ter funcionado na tv perdoe-me o leitor, mas o que aqui escreve
não assistiu à série original definitivamente
não funciona na tela grande.
A começar,
porque parece que finalmente se conseguiu entender a diferença
entre montagem e edição: montagem é quando você
corta um filme com objetivos de expressão; edição
é quando você picota uma peça para que ela possa ter
um formato de cinema (em torno de 100 minutos). Tudo bem, isso é
apenas uma brincadeira, a diferença é outra. Mas aqui pouco
importa: definitivamente O Auto da Compadecida não foi montado,
foi apenas editado. E mal. A edição acaba com qualquer diferença
entre dia e noite, qualquer idéia de ritmo (ritmo é a passagem
de tempos fortes para tempos fracos e vice-versa), e ainda por cima prejudica
absolutamente a direção quando cria erros fatais de continuidade
(que se lembre quando num momento Diogo Villela aparece atrás dos
dois personagens principais e depois desaparece sem dizer nem um adeuzinho
ao espectador). A edição fez do filme aquilo que, numa transmissão
de futebol, chama-se de compacto: guardam-se apenas os "melhores
momentos", e o resto a gente picota e tira do produto final. Tudo
bem, a gente vê tudo. Mas, como no futebol, justamente o que a gente
não vê é o clima daquilo que a gente vê. E no
cinema, o clima é tudo.
E se O Auto da
Compadecida tivesse sido um filme bem realizado? Dificilmente seria
muito melhor. O auto de Ariano Suassuna poderia de alguma forma se juntar
com aquilo que a Globo entende como sua visão de mundo, mas não
sem uma derrota da inteligência e do senso crítico. Não
precisamos nos estender aqui sobre o regionalismo superficial de Suassuna
que, entre outras coisas, prometeu que só conversaria com
Chico Science se ele mudasse seu segundo nome para "Ciência"
: basta dizer que o regionalismo exibido em esfera nacional é
um paradoxo ridículo. Mas o que é, independente de Guel
Arraes, o "Auto da Compadecida" de Suassuna? Nada senão
a afirmação da esperteza popular, de uma religiosidade popular
cristã contra a avereza dos padres e de uma fiel
crença na ingenuidade do povo. Como se pode mistificar!! A esse
nível, é preciso que se grite urgentemente o nome de Jorge
Amado, um escritor popular/populista que ao menos sabe que o povo pode
ser tudo, tudo, menos ingênuo. Essa ingenuidade, Guel Arraes trata
de repeti-la (aliás é todo esse o ideal da Globo com o programa
de Regina Casé, por exemplo), na medonha parte final do filme,
medonha ética (pela mistificação da "boa alma"
das pessoas) e esteticamente (pela incrível feiúra da cena
crucial em que Nossa Senhora aliás Fernanda Montenegro
desce aos Infernos para salvar João Grilo e cia.)
Filme perigoso por
tudo o que representa, O Auto da Compadecida ainda cria para si
um forte paredão "cultural": aparecia toda hora em propagandas
na tv Globo e foi motivo de um bonequinho aplaudindo no jornal "O
Globo". Coincidência? Rarrarrá. A crítica de
cinema finalmente torna-se o que já era há muito tempo:
release. A função ética do jornalista vai
definitivamente pras cucuias. Pois O Auto da Compadecida não é
nada além de uma obra ruim que manifesta desejos de absoluto: ela
é Xuxakespeare comercialismo disfarçado pela direção
"inteligente", a obra consagrada, a mistura de solenidade e
de farsa , mas também é "Cinderela Bacana"
uma obra muito mal produzida que se arroga ares de profundidade
com um verniz intelectual. Quem perde é o cinema.
Ruy Gardnier
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