Paralelas e Transversais
Austin Powers e o Homem do Membro de Ouro, de Jay Roach
O Império (do Besteirol) Contra-Ataca, de Kevin Smith


Austin Powers in Goldmember, EUA, 2002
Jay and Silent Bob Strike Back, EUA, 2001

O que mais impressiona no novo filme de Kevin Smith é o extremo egocentrismo que exala de cada fotograma, de cada piada. Embora o filme pareça exercitar uma auto-crítica ferina constante da sua própria existência e da obra cinematográfica do diretor como um todo, o que fica claro é que esta ironia consigo mesmo parte do pressuposto de que, ao ter consciência de seu próprio ridículo, ele consegue estar acima dele. Pois não está: o filme é de fato absolutamente ridículo. Pior ainda: só o fato de termos de mencionar o termo "obra cinematográfica de Kevin Smith" numa crítica mostra o equívoco completo que é este filme. Porque Smith não pode dizer que possui uma obra. Ele fez sim quatro filmes, alguns mais ou menos interessantes do que outros, e até criou um universo reconhecível neles. Mas, é um excesso de cara-de-pau supor que o corpo de seu trabalho se presta tão cedo a esta "homenagem" por vias avessas. Sim, porque o filme todo se refere de alguma forma a algo presente no trabalho anterior de Smith, e isso se torna irritante bastante cedo.

Pior ainda é o fato de que, no geral, as piadas são constrangedoras, e não engraçadas. Há dois ou três acertos no filme todo, mas olhando o todo, vemos que temos aqui uma típica comédia onde o trailer dava mais do que conta das piadas realmente boas. E o problema principal é que Smith quer conseguir uma mistura entre um humor grotesco e uma auto-ironia metalinguística inteligente. Não funciona, um está constantemente passado a perna no outro. A tentativa de criar uma história com personagens de fato, com desenvolvimento e "drama", chega a ser patética, quando não simplesmente insuportável.

Para entender porque basta comparar com o recente Austin Powers 3, este sim um filme que não tem vergonha de optar pelo humor mais grosseiro possível, e por um roteiro sem qualquer nexo ou "narrativa", no sentido mais cartesiano do termo. A diferença principal é que, supostamente, o público-alvo de Austin Powers não precisa ser "cool", antenado, auto-irônico. Ao se desvencilhar destas categorias de "superioridade", o filme consegue alcançar uma deliciosa irresponsabilidade que o torna uma das melhores comédias saídas do cinema americano desde os tempos áureos de Zucker, Abrahams e Zucker (Top secret, Corra que a Polícia Vem Aí, etc).

E não é nem surpreendente que, na sua completa falta de sutileza, produza um humor muito mais inteligente do que o de Smith. O personagem de Goldmember, em especial, é um daqueles achados da comédia que não se pode explicar. Nos remete muito ao trabalho mais insano que Mike Myers exercitou no Saturday Night Live. Este tipo de trabalho costuma ter dificuldades de transposição para a tela grande, especialmente pelo excesso de tempo no filme, mas Myers escapa bem disso dando pouco e precioso tempo de tela para cada personagem, que nunca esgotam sua graça. Talvez o único equívoco seja a Foxxy Cleopatra, personagem que nunca encontra seu tom.

Mas, na sua completa insanidade (que nos remete ao melhor do Monty Python), na sua despreocupação com lógica (que vai remeter ao Richard Lester de A Hard Day's Night, ou ao seu seguidor Roberto Farias de Roberto Carlos em Ritmo de Aventura), na sua grosseria sem vergonha alguma (pau a pau com o melhor dos Farrelly), e na sua ironia aos clichês de gênero de cinema (que lembra os citados ZAZ ou Mel Brooks), o filme de Myers e do diretor Jay Roach atinge resultados surpreendentes, daqueles de nos deixar sem ar após séries histéricas de gargalhadas. Um bom descanso da sessão deste filme pode ser o trabalho de Smith, com sua propensão fenomenal a nos fazer dormir.

Eduardo Valente