Através
da Janela,
de Tata Amaral
Através da Janela,
Brasil, 2000
Quando Tata Amaral apresentou o radicalismo
de Um Céu de Estrelas, seu filme de estréia, a dúvida
que sempre ficou foi: até aonde ela pode ir no segundo filme? Tata
opta de fato pelo aprofundamento da pesquisa iniciada no primeiro filme,
mas esbarra numa proposta ainda mais complicada que a anterior. Isso resulta
em um bom número de defeitos e de qualidades no produto final.
Mas, no cômputo geral, o principal é ver uma cineasta com
uma proposta clara de construção de obra, e acima de tudo,
alguém que fala contra a produção média, fruto
dos manuais de roteiro e de como se deve fazer um filme.
Através da Janela tem sido
descrito como a história de amor de uma mãe e um filho,
e claro que é. No entanto, não nos parece ser esse o foco
maior de interesse do filme, de forma alguma. Ele é, antes de tudo,
um estudo sobre a descaracterização de um ser humano. Ou
seja, uma vez que sua rotina e tudo aquilo que lhe é mais familiar
e necessário é tirado de sob seus pés, a pessoa perde
de tal forma as referências que deixa de reconhecer a si mesma,
ao ponto de não mais estar viva. Laura Cardoso interpreta esta
personagem (a mãe) de uma forma hipnotizante. De fato, os melhores
momentos do filme são todos aqueles em que ela está sozinha
em casa, e a câmera segue sua confusão, gradativamente maior
e maior. A destruição de sua rotina, de sua identidade,
de seus parâmetros, expressa habilmente tanto pela câmera,
quanto pela cenografia, quanto pelos fades, quanto especialmente pela
grande atriz. Este parece ser o grande foco de interesse do filme, o que
o diferencia dos outros em cartaz, esta vontade de ir fundo no personagem.
O segundo ponto claro de interesse do filme
é a forma obtida para ir fundo. Tata assume uma pesquisa absolutamente
anti-naturalista de encenação, ampliando a idéia
da ausência da psicologização excessiva e da naturalidade
de ações e reações. Este é um caminho
corajoso, pois muitas vezes aliena o público desavisado. O filme
assume um ritmo radicalmente pausado, e acima de tudo, calcado numa trilha
sonora "over" e cheia de ruídos. Tudo isso são
qualidades, vejam bem, pois o jogo proposto é um desafio ao espectador
que deve enfrentá-lo. Neste sentido, o filme lembra muito o Defesa
Secreta de Rivette. O público na sessão assistida se
mexe na cadeira, fica ansioso, como era de se esperar. Falta a ele paciência
antes de tudo, e mais ainda, o desinteresse necessário de quem
quer ser surpreendido. Todas as cenas de diálogos do filme causam
estranheza, e isso deve-se a uma interpretação excessivamente
"formal" de todo o elenco que não Laura. Proposital ou
não, não importa saber. O interessante é que a não-atuação
de Fransérgio Araújo como o filho ou a declamação
de Debora Duboc e Leona Cavalli ou ainda o alívio cômico
de Ana Lúcia Torre acabam dando um perfil interessante, pois todos
parecem ser de fato projeções do imaginário da personagem
central. São muitas vezes monofacetados por serem de fato a idéia
da personagem de Laura Cardoso dos papéis impostos a eles, que
lentamente vão se subvertendo. Eles não têm "profundidade"
pois representam apenas um olhar mesmo, o dela.
Por isso tudo, Através da Janela,
como experiência já é absolutamente necessário
no cinema nacional de hoje. No entanto, não se pode dizer que ele
é bem sucedido em absolutamente tudo que experimenta. Uma crítica
que pode se fazer é a toda a trama que cerca os motivos da ausência
de Raí (o filho). Aqui nos parece que faltou rigor e coragem de
ir até o fim. Sim, pois na verdade não importa o porquê
ele sai de casa, mas sim que saia. Não importa a trama que se construa,
mas sim a que se passa na cabeça da personagem desestruturada de
Laura Cardoso. Por isso, a trama quase policial armada não chega
a funcionar, e resulta um pouco "explicativa" demais, sem sequer
sê-lo totalmente. Embora a cena crucial de revelação
desta trama seja encenada de forma tão estranha que possa ser lida
como um "pesadelo-visão-projeção" da personagem,
não parece que seja recebida desta forma adequadamente, resultando
incompleta. Acena para o público com um suspense (que se constrói
até), mas não soluciona bem. Aqui, e em tudo que cerca a
casa, parece haver um medo de levar a proposta até o fim, um excesso
de "naturalismos" desnecessários (como o bar, a banca
de jornal) ou explicações redutoras (a tal cena de suspense).
O filme, se lido como um mergulho na mente
da personagem, confusa, sem controle, perdendo a sanidade, onde cada cena
pode ser interpretada como um sonho, um pesadelo, um devaneio, uma visão
em primeira pessoa sem a apelação clichê ao plano
"ponto de vista", e sim um mais complexo conjunto de "planos
subjetivos" (a diferença é importante e imensa) permite
uma fruição quase onírica em si. Há pistas
o suficiente para esta interpretação (o primeiro plano –
um mergulho em si mesmo , o plano final, os vários planos
de Laura sozinha sentada em cadeiras, à mesa, na cama), mas algumas
cenas que tentam "naturalizar" a sensação distanciam
o espectador desta possibilidade mais radicalmente. No total é
um filme que apresenta mais de uma oportunidade de interpretação,
e mais de uma sessão para se ver e rever. Suas qualidades e defeitos
são praticamente os mesmos. O que Um Céu de Estrelas
tinha de exatidão, surpresa e agitação, este tem
de desalinho, introspecção e estranheza. São caminhos
distintos, porém absolutamente coerentes entre si, uma radicalização
na mesma linha, e neste sentido compõem uma "obra", e
só isso é muito louvável.
Eduardo Valente
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