As
Quatro plumas, de Shekhar Kapur
The Four Feathers, EUA,
2002
Duas imagens assombram o espectador bem depois
do final de As Quatro Plumas: numa delas, um solitário homem
com um rifle, cercado de soldados armados que o ordenam que solte sua
arma, olha em volta a multidão local (de onde ele é) que
se forma, com mulheres e crianças em abundância, e recarrega
lentamente sua arma e a aponta para um soldado, sendo abatido na hora
– como conseqüência, algumas das crianças pegam pedras
no chão e as atiram nos soldados, que correm assustados. Em outra,
uma fileira de homens avança a cavalo sobre uma bem montada barricada
de soldados ingleses, e vão sendo abatidos um a um – até
que só sobra um, que continua cavalgando como se ainda fosse parte
de um enorme exército, até ser também, e obviamente,
abatido. No rosto dos soldados, em ambas as cenas, o mesmo olhar incrédulo
de incompreensão pelas atitudes "irracionais" destes
homens.
Para uma produção rodada com
todo o orçamento que claramente está na tela em As Quatro
Plumas, o filme foi bastante maltratado por seus distribuidores americanos
e internacionais (embora pudesse se dizer que o segundo caso foi resultado
do fracasso nos EUA). Isso geralmente se dá quando um estúdio
não acredita nos resultados que um diretor retirou do seu material
– mas também se dá quando um estúdio parece não
saber bem o que fazer com um filme. A descrição das cenas
acima ajudam a entender um pouco a reação da Miramax e da
Paramount com este filme que, começado bem antes de 2000, seria
lançado pós-11/9. A situação acima descrita
lembra completamente a situação de palestinos (a primeira
situação especialmente é referência clara e
direta) e terroristas suicidas, e o filme mostra com enorme dualidade
o conflito entre um império e um povo oriental sendo atacado pela
nação mais poderosa do mundo. Há de fato um momento
onde se discute o porquê da invasão de um lugar "tão
distante" (nas palavras de um soldado), e o filme deixa claro que
entende a necessidade de imposição de uma civilização
sobre outra como o objetivo central desta campanha.
Por mais que o livro que dá origem
ao filme seja um dos maiores clássicos britânicos (tanto
assim que esta é a sétima versão para cinema da história),
e seja principalmente na sua origem um retrato da luta de um homem para
recuperar sua honra e amizades, o retrato que o diretor Kapur (interessantemente,
um indiano) quis dar é muito mais negro e confuso. E, por mais
que o filme em várias partes pareça absolutamente retalhado
(há elipses quase incompreensíveis e as cenas de prólogo/epílogo
são dramaticamente muito mal resolvidas – exatamente a história
de amor que deveria ter movido o estúdio e que parece absolutamente
inverossímil), o olhar de Kapur (que está claro nas duas
cenas citadas no começo do texto), perpassa todo o trabalho.
Numa era de hiperrealismo tornado comum em
cenas de batalha, Kapur ainda consegue fazer um filme incrivelmente selvagem,
fisicamente desagradável, incômodo mesmo. Diretor com um
olhar extremamente atento para a composição visual e sonora
de seus filmes (como o anterior Elizabeth deixava bem claro), Kapur
dirige cenas de ação que possuem um certo componente quase
surrealista na sua estranha combinação de beleza e de brutalidade.
Mas, acima de tudo, seu filme nunca perde de vista a problematização
da ideologia imperialista, do belicismo, e, principalmente, oferece um
retrato sempre muito dúbio da determinação suicida
e cheia de ódio dos povos invadidos. Não surpreende, portanto,
porque os estúdios "esconderam", na medida do possível,
o filme. Pouquíssimo heróico (mesmo o protagonista é
constantemente salvo por um nativo que se afeiçoa a ele), extremamente
angustiante e confuso, não é filme de "propaganda"
muito adequado em época de mandar nossos soldadinhos ao Iraque,
definitivamente. Se o filme não chega a ser excepcional, inclusive
sendo difícil saber o quanto ele é produto final de um processo
de remontagem, ele é muito mais interessante do que seu lançamento
deixaria imaginar – e isso não é nem um pouco sem querer.
Nem que fosse só por isto, vale brigar para que seja visto. Parece
tão atual quanto qualquer noticiário de TV.
Eduardo Valente
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