Apolônio
Brasil o Campeão da Alegria, de Hugo Carvana
Brasil, 2003
Apolônio
Brasil começa com Marco Nanini cantando uma música ao
piano, completamente cercado pela escuridão. O verso final e principal
da letra dá a chave de compreensão do filme: "Agora
é recordar". Não há qualquer dúvida que
Carvana fez um filme memorialista, uma ode aos tempos por ele vividos,
tempos que muitas vezes remetem a seus outros filmes. O paralelo com Bar
Esperança é o mais inevitável, ainda que aja
uma diferença central e importantíssima: enquanto o filme
de 1983 trata do presente, este novo filme de Carvana se apóia
no passado. Só que, ainda assim, visto hoje Bar Esperança
parece tão mais carregado de uma certa melancolia, de uma noção
de finitude de um momento histórico-social que impregnava os personagens
do filme. Nele você podia sentir o processo de uma mudança
em curso, visto com olhos nem tão otimistas assim. Já em
Apolônio, ao olhar para o seu passado (e o de sua geração),
Carvana opta por celebrá-lo - e com isso o filme ganha um tom muito
mais "para cima" por assim dizer. Por isso, sendo paradoxal
e fazendo todo sentido, ao mesmo tempo, vistos com os olhos de hoje o
filme sobre o presente parece muito mais "saudosista" do que
o filme sobre o passado.
Há uma chave
para decifrar o porquê deste fenômeno, e ela está numa
frase dita por um dos personagens quando ele aparece num dos vários
"flashbacks". Ainda jovem (em comparação aos personagens
envelhecidos que narram a história no presente), ou seja, numa
chave de tempo que em si devia se referir a um certo memorialismo no registro,
ele afirma: "Bons tempos aqueles...", se referindo aos amores
de sua infância. O que esta frase deixa bem claro é que os
bons tempos, quando vistos pelos olhos da memória, sempre serão
outros, anteriores, idealizados, passados. Por isso, o filme assume um
olhar que está longe do generalizante "as coisas não
são mais como eram", que domina, por exemplo, um Invasões
Bárbaras. Para Carvana não importa comparar as coisas
como são com o que já foram. Importa sim é deixar
claro que para seus personagens (e para todos nós), os tempos passados
sempre serão os "bons tempos" no discurso, embora se
continue vivendo o presente à toda (e transformando-o no que logo
depois serão os "bons tempos" do futuro...). Isso fica
muito claro quando Pedro X afirma no final ao amigo Apolônio, falecido,
que espera vê-lo no Céu, mas "que ainda demore um bom
tempo". Ali fica claro que, por mais que o filme celebre um passado,
os personagens ainda têm gana de viver o seu presente – há
boas lembranças de um amigo que partiu a serem divididas, mas ninguém
parou de viver por isso. Não por acaso, pela segunda vez (a outra
no já citado Bar Esperança), o bar-símbolo
de um filme dele é fechado com festa, com bebedeira, com celebração
– e, no fechamento do Golden Night um outro personagem afirma: "São
outros tempos, mas a vida, essa continua!".
O registro deste passado
recordado é o da fantasia e não o da realidade de um "tempo
melhor", e por isso sua encenação é de fato
fantasiosa, deixando claro que o que está em jogo aqui é
menos um outro tempo e sim a lembrança desta, sempre dourada, parcial.
Por isso é que a chave do musical funciona muito dentro do filme:
o que se relembra não são "fatos", e sim a fantasia
de uma vida em grupo, as lembranças de um coletivo de amigos sobre
um outro amigo que não mais está com eles. Fantasia esta
que fica bem clara desde um orfanato absolutamente anti-naturalista até
um bordel de sonhos (com direito a coreografias), a até mesmo uma
passagem por um manicômio resolvida com um número musical.
Este passado ser tão fantasioso é a maior prova de que seu
espaço é o da imaginação, não o da
realidade, e pode-se mesmo dizer que Carvana faz um filme que muito mais
do que uma crença em "tempos melhores" é um comentário
agudo sobre a velhice e a necessidade nela de se imaginar a vida como
uma de "bons tempos" anteriores. Para isso, ele se serve de
uma reconstituição que usa de todos os recursos, sejam eles
técnicos (incluindo aí bons efeitos especiais, por exemplo,
na cena do major do exército e a viagem de ácido) sejam
eles dramatúrgicos (a própria opção por fazer
da passagem pela ditadura algo quase cômico), para deixar claro
que seus personagens estão, com certeza, "dourando a pílula".
Não é papel deles (e não seria do filme), numa celebração
de um amigo, tornar sua lembrança algo doloroso – eles estão
ali para celebrar Apolônio e ponto final. A maior prova é
o próprio Golden Night, que surge, assim, não como um bar
– surge quase como um oásis da boemia, como uma terra sagrada a
ser adorada (o painel decorativo na parede, a iluminação,
tudo é um tom a mais).
É nesta recordação,
nas cenas do Golden Night principalmente, que o filme encontra sua maior
força. E encontra, entre outros motivos, porque Carvana consegue
misturar um humor que vai do mais chulo ao mais elegante, muitas vezes
na mesma cena. E que não abre mão de defender suas preferências
não importando o que o politicamente correto ordene – há
odes constantes à poligamia, ao whisky, ao cigarro, à boemia
acima de tudo. Seus personagens ganham vida em meio a este clima celebratório,
ainda que mais como "personae" do que qualquer coisa (Pedro
X, Miluzinha, Dona Neném, o "Coice" - nem os nomes parecem
reais). São tão fantasiosos quanto as lembranças
que os cercam, e o único que ganha dimensão maior é
mesmo Apolônio. Dimensão esta dada em grande parte por Marco
Nanini, numa interpretação em múltiplas chaves e
muita paixão. Inclusive incorporando uma enorme melancolia ao seu
tal "campeão da alegria", naquele que talvez seja o mais
sutil e belo movimento do filme de Carvana. Escorando-se numa trama no
presente em que Apolônio é declarado por um cientista um
molde de alegria a ser clonado, o passado mostra um homem muitas vezes
desesperado, que chega a ir parar num hospício, internado pelos
próprios amigos, louco por causa de um amor desfeito. Ora, o fato
de Carvana conseguir ligar um homem que chega a ser internado com a imagem
de um campeão da alegria é sinal claro daquilo que ele defende
como alegria: viver a vida ao máximo. Não seria alegre,
então, aquele que não sofre por amor, aquele que não
sofre por não conseguir achar o dito "acorde perfeito"
que fará o mundo feliz. Sem a tristeza de um coração
partido, de um sonho inatingido, diz Carvana, não se pode ser de
fato alegre. É bela, muito bela, a noção de que ser
alegre não significa não ter sofrido, não sofrer.
Carvana idealiza um passado, mas ainda assim um passado onde há
muito whisky a ser bebido por dores da alma – e isso seria, de fato, uma
lembrança feliz.
Não se pode
negar que o filme, enquanto estrutura narrativa, tropeça inúmeras
vezes (em especial no seu final e na primeira meia hora), e aparenta por
vezes estar preocupado demais em montar sua história (a cena da
conversa de Dona Neném com o filho, por exemplo, é uma das
que parece filmada burocraticamente para passar uma informação).
Mas é um filme que fica tão mais adorável, tão
mais defensável, quantos problemas ele parece acumular. Não
importa que a trama do presente empaque – José Lewgoy é
quase sempre delicioso em sua auto-paródia. Não importa
que a maquiagem de velhice pareça não fazer muito sentido,
cronologicamente falando – há muita diversão em ver aquela
"patota do Carvana" brincando de velhinhos. Não importa,
por fim, que passado e presente se articulem mecanicamente – queremos
ver mais e mais de Apolônio ainda assim. Apolônio Brasil
é um filme extremamente vivo sobre um morto, e é um filme
que respira em muitos e muitos níveis. Sua entrega ao passado nunca
é tola e ingênua, sua celebração nunca é
excludente e morta em si, sua paixão pela vida pulsa sempre e sempre.
Por isso é que, sem dúvida alguma, a mais bela cena do filme
é, justamente, a do encontro de Apolônio com o seu filho
- um libelo por "estar vivo", antes de tudo, a época
não importando. Não é filme de cineasta morto, e
isso é o que realmente importa.
Eduardo Valente
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