Aos Olhos de uma Mulher,
de Antonio Serrano


La Hija del Canibal, México, 2003

Sexo e pudor, mas sem lágrimas

A Filha do Canibal. Esse é o nome correto. Mas, por sugerir se tratar de um filme de terror, os distribuidores preferiram traduzir o título para uma seqüência batida de palavras, fazendo-se passar por uma comédia água com açúcar sob o ponto de vista feminino. Questão de segurança de mercado para este novo trabalho do mesmo diretor de Sexo, Pudor e Lágrimas. Mas o nome original (que, diga-se de passagem, não evoca nenhum monstro antropofágico) faz todo o sentido. Ele faz menção a uma passagem importante, onde o pai da protagonista (vivida pela atriz Cecilia Roth) conta histórias que prendem a atenção e enriquecem o imaginário infantil da filha. Nesta parte, é estabelecida uma relação de confiança entre ambos, mesmo que o assunto seja fantasioso. Não está claro se Cecilia acredita ou não no conto da carochinha, mas isso não importa. Não obstante, a partir desses inventivos relatos do pai, a filha nutre por ele uma profunda admiração elektriana, pois acredita que este hábito alimentício primitivo é que deu ao pai as forças para conquistar sua mãe, sendo que a partir de então os pombinhos viveram felizes para sempre.

Felicidade matrimonial. Esse é o tema que permeia todo o filme. O pai, velho, continua repetindo as histórias canibalescas, como se fosse a primeira vez que Cecilia as estivesse ouvindo. A mãe, uma atriz decadente, não deixa escapar uma única oportunidade para menosprezar e ridicularizar o pai, colocando-o no nível máximo do constrangimento. A partir deste modelo paterno destruído pelas ambições e pelas incompatibilidades é que Cecilia vai questionar seu próprio relacionamento matrimonial.

Tudo começa quando Cecilia recebe um telefonema de que seu marido teria sido seqüestrado, cabendo a ela receber as instruções para pagar o resgate. Como todo filme que trata esse tema, é óbvio que ela não tem a quantia requisitada, mas jamais passa por sua cabeça uma negociação, pois o que está em jogo não é a precificação da vida do esposo. No decorrer do apuro, ela conhece seu vizinho (papel de Carlos Alvarez-Novoa), um senhor de idade, um veterano de guerra que mostra seu lado gentil, atencioso e até galanteador. Conhece também um jovem (papel de Kuno Becker), que parece ser um aventureiro disposto a arriscar tudo pelos seus ideais. Pronto, está formado o trio. Cecilia, uma escritora de meia-idade, convivendo com os opostos etários: a experiência do velho e a vivacidade do novo. Aí a coisa se inverte. É ela quem está sendo admirada por esses extremos. Os elogios através das palavras vêm do idoso. E a atração física vem do guapo. Tudo o que ela esperava receber do marido e, ao que o enredo indica, não lhe era oferecido.

Aos poucos, o filme muda de objetivo. A procura frenética pelo cônjuge cede lugar às descobertas pessoais. Cercada pela tietagem em diferentes níveis, Cecilia parece que começa a viver em busca do tempo perdido, como se tivesse acabado de passar um creme de rejuvenescimento. E, conseqüentemente, cede aos seus desejos e impulsos sexuais, revitalizados na figura do mancebo; no início até com um certo pudor e uma crise de consciência, mas, depois, à medida que o romance tórrido avança, sem nenhum tipo de remorso. O que vale é o carpe diem.

A proposta do filme é valida ao colocar em xeque instituições falidas e hipócritas como o casamento, nos dias de hoje. No início, o semblante preocupado da protagonista indica que salvar o marido seria como salvar o próprio matrimônio. Mas o filme, apesar de tudo, ainda guarda um certo ranço conservador, pois não vai a fundo na questão e permite certas concessões. Ou seja, Cecilia só se desvencilha da prisão que é a união matrimonial quando descobre que o marido está envolvido num grande esquema de corrupção. A ação libertina da protagonista se justifica através do caráter duvidoso de seu esposo. Nesse caso, o crime do adultério serve de troco para o crime do estelionato. Seria mais contundente se o filme não estabelecesse qualquer tipo de paralelismo entre estes pecados, onde um funcionaria independentemente do outro. À filha do canibal, entretanto, sobra o olhar vingativo e rancoroso da situação, como se ela estivesse fazendo justiça com as próprias pernas. Com o consentimento do público pagante.

Érico Fuks