Voltando
a Viver,
de Denzel Washington
Antwone
Fisher, EUA, 2002
Aos que estejam desinformados sobre o processo de idealização
deste filme, um dos primeiros créditos a surgir na tela ao final
da projeção serve como explicação bastante
clara daquela que é a principal fonte dos problemas que o afligem.
Está lá, bem grande: escrito por Antwone Fisher. Ora, se
pensamos que na última cena do filme acabamos de ver um personagem
virar para Fisher (não o roteirista, o personagem principal do
filme) e dizer "Não fui eu quem te ajudei, foi você quem
me ajudou: você é um campeão!", percebemos que o filme
sofre de um pequeno distúrbio de parcialidade. Afinal, como bem
sabemos, a história quando contada pelo seu próprio protagonista
é altamente duvidosa. Não é caso de dizer que "não
existe uma realidade por si", ou que "tudo no mundo são versões".
Isso é óbvio. Mas, o caso é de se discutir um filme
que estabelece uma narrativa heróica, e que foi escrito por quem
a viveu. Idealizado é pouco, se pensamos desta forma: Antwone Fisher
está escrevendo sua própria lenda, e é até
normal que ele pareça um deus de ébano dos bons sentimentos.
Diga-se que o filme
nem precisava ser ruim por causa disso. Afinal, se pensamos no que, por
exemplo, A Festa Nunca Termina tem de mais interessante é
justamente assumir a parcialidade cara de pau da visão histórica
que está passando. Agora, um dos problemas aqui é que a
narrativa nunca se assume como o conto narrado por seu próprio
protagonista. E aí, ficam bem mais graves os excessos do filme,
que são três: de didatismo, de sentimentalismo, e principalmente,
de maniqueísmo. É normal que Fisher, se passou por pelo
menos um terço do que está na tela, tenha uma visão
dos fatos segundo a qual há vilões indignos de qualquer
perdão (mais exatamente sua mãe adotiva, sua prima e sua
mãe verdadeira - que é objeto de uma das cenas mais maldosas
do cinema recente), e heróis puros completos (ele, antes de todos,
mas também sua namorada e seu psiquiatra). Mas o que não
dá é para o diretor do filme, no caso Denzel Washington,
comprar esta versão e filmá-la endossando esta versão,
e manipulando o espectador ao não dar sequer uma chance de humanização
das personagens do primeiro grupo ou de contextualização
das do segundo. Mas o tratamento (tanto dramatúrgico quanto estilístico)
dado aos personagens lembra mais o Lado Negro da Força e os Jedis.
Mesmo assim, ainda
poderia ser um bom filme se Washington não fosse tão formulaico
na condução da narrativa. Só que cada cena pode ser
antecipada em pelo menos uns dez minutos, e o hiper-batido formato "confissões
ao psiquiatra-flashbacks demonstrativos", ou ainda "ao ajudar o doente
a achar a cura, psiquiatra resolve seus próprios problemas", simplesmente
não colam mais. O que é uma pena, porque a fotografia de
Philippe Rousselot empresta uma impressionante dignidade à palheta
do filme, e podemos ver como este mesmo material nas mãos de um
Spike Lee poderia ter profunda ressonância como uma busca das origens
do negro americano pela via de um personagem. Como está, ficam
apenas cacos de interesse no entorno (seja de conteúdo ou forma),
mas o cerne do filme é de uma autêntica obviedade atroz.
Eduardo Valente
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