A.I.
Inteligência Artificial,
de Steven Spielberg
A.I.,
EUA, 2001
Um filme qualquer de Steven Spielberg jamais passa em brancas nuvens.
Quanto mais A.I., um filme que antes de ser realizado já
havia causado bochicho por tratar-se da inesperada associação
de Spielberg com Stanley Kubrick. Morre Kubrick e o sr. SS fica encarregado
do projeto (nos créditos, a única menção ao
diretor de Eyes Wide Shut figura em sua companhia de produção).
Mas todo mundo vê A.I. pensando: "Isso é Kubrick,
isso é Spielberg", e assim por diante. Não que isso
seja necesariamente equivocado, mas parece que não toca o ponto
do filme. Porque, por mais que se tente fazer a decupagem e a justa medida
entre os dois diretores, há um cômputo geral que sempre faz
a decisão. E não é a favor de Kubrick.
Mas a pergunta que
nos parece mais interessante de ser feita é: A.I. é
um filme bem-sucedido? Se buscarmos do ponto de vista do público,
a resposta é não. Todos saem respeitando muito o filme,
achando-o muito inteligente. Mas a resposta que A.I. pede não
é essa. A.I. pede devoção. E não tem,
majoritariamente. O novo filme de Steven Spielberg é bem-sucedido
como filme? Aí (sem trocadilho) é que a coisa pega. O filme
é desconjuntado, falta lógica interna, não resolve
os problemas que coloca, quer agarrar o mundo e o mundo lhe escapa. E,
por fim, A.I. é bem-sucedido como um filme de Steven Spielberg?
A essa resposta podemos dizer tranqüilamente: sim. O filme é
o mais pessoal de Spielberg, deixa às claras tudo aquilo que estava
escondido atrás da pura diversão de filmes como Caçadores
da Arca Perdida ou da pretensão inalcançada de O
Resgate do Soldado Ryan ou A Lista de Schindler.
Em A.I., encontramos
tudo que está presente no cinema de Spielberg: aliviar qualquer
problema ético para que consiga ser entendido por pré-adolescentes,
falta de ambigüidade, a felicidade do suburb americano e da
família perfeita, a visão redentora do ser humano porque
ele tem os dons da superação e do amor... tudo aquilo que
se opõe radicalmente ao cinema de Kubrick. mas seria fácil
demais contrapor um a outro e demonizar Spielberg por não ser um
Kubrick. Ele nunca quis sê-lo, e malgrado haver no diretor de ET
uma má-consciência profunda por ser incapaz de tratar com
seriedade os temas de seus filmes, o desejo de ser um diretor sério
e inteligente fica apenas no sentido do reconhecimento intelectual/cinematográfico.
Spielberg não quer ser ninguém além de Spielberg.
E é justamente
por isso que A.I. é tão incrível. É
um filme confessional. A volta à criancinha como personagem principal
vem agora recheada com um ingrediente especial: o amor. David é
um robô criado para ser "o primeiro de uma nova espécie".
Ele é fruto de um amor mal resolvido, o de seu criador (interpretado
por William Hurt), que perdera seu filho ainda criança. David é
o substituto. Ele será o primeiro robô que aprenderá
a amar, a amar incondicionalmente seu dono. Numa palestra, uma estudante
pergunta: "O robô será programado para amar seu dono,
mas seu dono poderá não amá-lo. Isso não envolve
um problema ético?" A pergunta, infelizmente, não conseguirá
ser suficientemente bem respondida. Spielberg ama demais os valores familiares
para chamar dois pais de família (e, no limite, a raça humana)
de exploradores. Mas David é testado em uma família que
já perdeu as esperanças que seu filho se recupere de uma
doença que o deixa paralisado, em coma, num hospital.
A primeira parte,
que mostra a aclimatação da família com David, é
disparada a melhor de A.I. Por um instante, parece que não
se sabe muito bem o que vai acontecer, há quase uma inversão
de papéis em que parece ser David que controla psicologicamente
o casal, que não tem a mínima idéia de como tratar
o menino-robô. Mas um milagre acontece: o filho, aparentemente perdido
para sempre, retorna à vida. David torna-se pouco a pouco indesejável,
apenas um superbrinquedo. Deslocado de suas funções, começa
a ter disfunções: disputa seu amor com o filho real, recusa-se
como robô, imagina-se menino, e vai até o ponto onde representa
um perigo real para a família. A mise-en-scène de
Spielberg ressalta ao máximo a impossibilidade da família
de continuar com ele. Logo, quando sua mãe deixa-o na floresta,
não vemos um ato de crueldade, mas de preservação
de um ambiente familiar.
Na floresta, começa
a segunda parte do filme. David estará entre os seus, entre os
mecas, diminutivo de macânicos. Entre eles, entre os indesejados
do mundo robótico habitam as selvas os robôs deformados,
destruídos, aqueles que já não servem mais para cumprir
as missões para as quais foram designados , David não
se sente em casa. Não estamos num filme de John Carpenter ou de
Tim Burton, onde o gueto tem papel político e identitário.
O gueto é encarado como lugar provisório, um não-lugar,
quase. O menino-robô, mesmo entre os seus, mantém seu desejo,
aquele para o qual foi programado: amar sua mãe. E como ele imagina
que sua mãe não gosta dele porque trata-se apenas de um
robô, a missão de David será encontrar um meio de
tornar-se humano, "a real live boy". Ele encontrará o
adorável Gigolo Joe (interpretado por Jude Law), um meca programado
para satisfazer os desejos sexuais das mulheres. Juntos, eles enfrentarão
algumas peripécias juntos: serão presos por um fanático
grupo que odeia mecas e o mundo virtual, serão soltos porque David
será confundido com um menino verdadeiro (porque "mecas não
gritam quando vão morrer"), irão para uma cidade à
procura da Fada Azul, a fada que transformou Pinóquio com
quem David inequivocamente se identifica. Nessa segunda parte, Spielberg
mostra suas asinhas: as duas cidades, cheias de lascívia e luxúria,
são filmadas com excesso e a partir de uma direção
de arte excessiva e desgastante, revelando o profundo freio moral que
seu cinema tem com tudo aquilo que diz respeito à confusão
dos sentidos, com os excessos de forma geral. Os personagens de Spielberg
não têm parte maldita, não fazem nada por excesso,
não têm nenhuma necessidade inatualizável. Sempre
atuam deliberadamente: ora porque são bons, e fazem o certo, ora
são maus, e fazem o errado.
Ao fim da segunda
parte, David finalmente encontra sua Fada Azul: seu criador, anos depois,
está numa Nova York, destruída não por aviões
terroristas, mas pelo aumento do nível do mar, que vitimou também
cidads como Amsterdã ou Veneza. Lá, ele se verá repetido
à exaustão, em vários pequenos Davids ou Darlenes.
Seu criador ama sua criação: ele diz a David que deve orgulhar-se,
pois nenhum robô até então havia perseguido um objetivo
da maneira que David fez. Engraçado. William Hurt não diz
isso de forma cínica, mas apaixonada. Aí (agora com trocadilho)
reside a grande diferença entre Kubrick e Spielberg. Para Spielberg,
qualquer belo sentimento cria belas coisas. Nesse momento, David vira
um menino (para o filme, para a visão de Spielberg). Ele ama, ele
teme a morte (podemos até sentir o eco da fenomenologia alemã
rondando). Spielberg, como bom criador de robôs, identifica-se a
William Hurt e a Haley Joel Osment, e passa a acreditar na busca desse
último por sua mãe. No limite, não há mais
distinção entre uma programação de computador
e o sentimento de uma pessoa real. Spielberg cai na própria cilada.
Se alguém está até agora procurando a diferença
de Spielberg e Kubrick, que procure a partir do ponto de vista da identificação,
da mímesis.
Não contarei
o filme até o final, mas uma coisa deve ser dita: a resposta comum
ao filme (todos parecem sair do filme dizendo isso) é que o filme
é muito bom até o fim da segunda parte, e que a terceira,
onde David finalmente realiza seu desejo, é péssima, piegas,
sentimentalóide. Essa distinção não nos parece
justa. O filme é de Spielberg do começo ao fim. O final,
realmente mal trabalhado (um deus ex-machina que leva as pessoas às
gargalhadas, uma elevação de tom da parte de Haley Joel
Osment para que todos saibam que é o momento crucial do filme,
uma explicação sem pé nem cabeça do futuro...),
só confirma aquilo que o filme todo prepara: a saga de um robô
que vai pelo amor se transformando aos poucos em menino.
Mas aquilo que de
fato faz problema em A.I. (e que faz desse filme a obra mais importante
de Spielberg desde... desde... há quinze anos pelo menos) é
a questão da identificação. É impossível
não ver em William Hurt a própria figura de Spielberg, é
impossível não ver em David um filme de Spielberg à
procura de um público que o ame de forma incondicional. Em A.I.,
Steven Spielberg está nu. É sua teoria de cinema, sua teoria
da vida até. A.I. poderia se chamar Eu Só Quero
Que Vocês Me Amem, à maneira do filme de Fassbinder.
Pois o que começa sendo um filme que testa os limites éticos
do ser humano acaba transformando-se num filme sobre a necessidade de
amar. Não um amor consciente, decidido. Um amor programado. O que
é mais estranho em A.I. e nesse momento devo confessar
que fiquei embasbacado quando vi o filme pela primeira vez, em estado
de total incompreensão é que o amor não existe
de forma qualitativa. Ele não importa pela qualidade, mas pela
quantidade, ou pela presença/ausência. A.I. se liga
à tradição dos filmes que, sem sabê-lo, encaram
o amor de forma doentia, bizarra até: A Vida É Bela,
Assédio... O amor de David jamais é colocado em questão.
Ele ama e pronto. Que maior confissão poderia um diretor de cinema
como Spielberg fazer sobre seu métier? O autor de A.I. desnuda
seu amor de cinema, revela sua profunda necessidade de agradar a todos,
sua triste solidão de criança grande. Mas que ninguém
pense o contrário: Spielberg não é um coitadinho.
Esconde atrás disso tudo uma má-consciência gigantesca,
uma arrogância sem tamanho, arroga-se toda a falta de moral (não
trabalhada no filme por motivos óbvios) do personagem interpretado
por William Hurt. Fala-se muito a respeito do reacionarismo de Spielberg.
Mas isso no fundo não quer dizer nada. A questão de fato
é: qual é o reacionarismo de Steven Speilberg? Não
é o de um republicano, não é o de um fascista, não
é nem mesmo o do neo-liberalismo (ele não é cínico).
Seu reacionarismo é o da inocência, o da bondade, o da infância,
enfim: tudo se resume a um jogo de bem e mal onde não há
meios tons e onde a felicidade só existe no seio familiar, entre
pai e mãe, entre aqueles que se amam, uma paz assexuada (o sexo,
como tudo que confunde os sentidos, está fora de seu cinema), paz
de suburb, grama verdejante, filhos de uniforme. Num mundo desse,
não pode haver desigualdade, não pode haver luta. Qualquer
coisa desse tipo é encarada como um ato de violência, como
um ato do mal. Um tal mundo é o mundo sonhado pela América.
Mas esse é justamente um mundo de sonho, um mundo de mentirinha.
Ele joga a sujeira para baixo do tapete. E essa vassourada é a
marca registrada de Spielberg, é o recalque profundo de seu cinema.
É onde se aprende a admirar a empreitada mas repugnar os resultados
de A.I.
Ruy Gardnier
|
|