Água
Quente sob Ponte Vermelha,
de Shohei Imamura
Hakai
hashi noshitano nuri mizu, Japão/França, 2001
Ao se tentar pensar a posição de Shohei Imamura dentro do
cinema japonês, e mais especialmente, suas posições
sobre seu próprio país, não é difícil
chegar a um perplexo estranhamento. Ao mesmo tempo crítico da tradição
e desconfiado do processo de ocidentalização do Japão,
que estava em pleno vigor quando da formação do cineasta
e ainda à época de seus primeiros filmes, é sempre
difícil tentar enquadra-lo. Pode-se identificar, de fato, um gosto
por uma certa forma de anarquismo, mas ainda assim uma não muito
fácil de descrever, que poderia ser vista até mesmo como
um anarquismo conservador. Em 89, após realizar o excepcional Black
Rain, Imamura anunciou que se tratava de seu último filme.
Oito anos depois mudou de idéia e realizou A Enguia, ao
qual se seguiram Dr. Akagi e este Água Quente
sob uma Ponte Vermelha.
À primeira
vista, este esforço de colocar em perspectiva um pouco da obra
de Shohei Imamura pode soar estranha, mas o fato é que o Imamura
dos filmes recentes já não é o mesmo de antes. Um
fã incauto que se confronte com este Água Quente sob
uma Ponte Vermelha poderia, num primeiro momento, até se perguntar
sobre o que aconteceu com o autor de Minha Vingança e A
Balada de Narayama. Impressiona, por exemplo, o quanto o Imamura recente
lembra o último John Ford, especialmente o de filmes como O
Aventureiro do Pacífico. Não se trata, afinal, de um
paralelo que em outros tempos se esperaria traçar. Mas lá
está, seja no humor, seja no tom descontraído, nas pequenas
comunidades construídas à margem, seja na preferência
por valorizar as pequenas excentricidades das personagens sobre a trama.
Impressiona também
o quanto Água Quente sob uma Ponte Vermelha e A Enguia
têm em comum. São pequenas comédias passadas em comunidades
que parecem existir fora do Japão atual, onde um homem (Koji Yakusho,
ambas as vezes) se vê imposto a reconstruir sua vida, aí
incluída a sua própria identidade, bem longe daquela que
um dia teve (em ambos os filmes Yakusho fora um executivo numa grande
cidade). A segunda chance acaba se dando através de uma mulher
(Misa Shimizu) tanto num quanto no outro. Num primeiro momento estas duas
pequenas fábulas parecem até mesmo excluir o Japão
contemporâneo completamente, mas nada podia ser mais distante do
temperamento não-conformista de Imamura, e é exatamente
o Japão que está no centro deste dois belos pequenos filmes.
A julgar pelo que
de melhor o seu cinema vem produzindo (os filmes de Takeshi Kitano, Shinji
Ayoama, Kiyoshi Kurosawa) o Japão é um país em crise
existencial. Água Quente sob uma Ponte Vermelha não
esta nem um pouco distante destes filmes, mas a abordagem, como não
podia deixar de ser, é bem própria de Imamura. Há
um imenso desencanto nas cenas iniciais do filme, como se o cineasta reconhecesse
que muitas das conseqüências que ele apontara na ocidentalização
do seu país se confirmaram, há uma visão bastante
negativa sobre o momento do país. Não é à
toa que haja tanto humor em Água Quente sob uma Ponte Vermelha
é como se Imamura tentasse, em vão, diminuir a dor que marca
cada personagem. Há ainda que se destacar Koji Yakusho, que além
de A Enguia e destes filmes, protagonizou Eureka de Ayoama
e todos os trabalhos recentes de Kurosawa. É um caso de casting
perfeito, o seu rosto é ao mesmo tempo absolutamente banal e marcado,
como se por dentro ele estivesse sempre sangrando.
Se Água
Quente sob uma Ponte Vermelha acaba por se revelar um grande filme,
isto também passa muito por algumas das opções do
Imamura recente, que talvez o faça parecer, num primeiro momento,
um filme banal. De fato trata-se de um filme menor, da mesma forma como
antes o fora A Enguia. Pode-se até mesmo questionar se este
Imamura dos últimos filmes não perdeu algo, e de fato, talvez
o tenha, mas há compensações. Água Quente
sob uma Ponte Vermelha (como antes já era A Enguia)
é um filme que alcança sua grandeza justamente na medida
que aposta nos pequenos detalhes, na forma discreta com que dá
valor aos objetos ao redor de suas personagens, em como valoriza nuanças
de comportamento das mesmas ou como insere um belo, mas discreto e aparentemente
sem importância, plano no meio de uma seqüência. É,
por fim, um filme que parece pedir para ser subestimado, mas é
justamente na soma destes pequenos momentos que Shohei Imamura termina
por atingir mais um grande momento de seu cinema.
Filipe Furtado
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