Adaptação,
de Spike Jonze
Adaptation,
EUA, 2002
O filme que não estava lá
Adaptação
é o segundo filme de Spike Jonze sobre a dificuldade de ser.
É também sua segunda parceria com o roteirista Charlie Kaufman,
que nesse filme resolve assumir o tal conflito existencial e se inserir
na história como protagonista. Já em Quero Ser John Malkovich
todos pareciam querer buscar no outro algo que as circunstâncias
próprias insistiam em lhes negar, eram pessoas à espera
de um portal, de uma via de acesso a uma realidade pulsante. A princípio
desencantado com seu desemprego e com o anonimato das marionetes que cria,
Craig Schwartz, o titereiro interpretado por John Cusak começa
a ter o destino mudado quando arruma um emprego no absolutamente antifuncional
andar sete e meio de um prédio e descobre no escritório
a passagem que o conduz até o cérebro de John Malkovich,
permitindo-lhe ver tudo através dos olhos do ator por quinze minutos.
Uma das grandes motivações do filme está na frase
de Lotte, a esposa de Craig que Cameron Diaz encarnou com altíssima
competência (a enfeada da vez, o que em Adaptação
corresponde à versão gorda e pasmaceada de Nicolas Cage):
"Eu sabia quem eu era", Lotte afirma maravilhada, após
cair na beira da estrada em Nova Jersey (para onde todos que adentram
ao portal são cuspidos depois que terminam os quinze minutos).
Ela sabia quem era enquanto estava "dentro" de John Malkovich,
por isso precisava voltar: ao falar da facilidade de ser o outro, de viver
a vida do outro, o filme abordava premências da contemporaneidade
(o indivíduo querendo se duplicar, estar aqui e ali, compartilhar
subjetividades; a dialética entre fama e anonimato num mundo em
que a profecia de Andy Warhol se confirmou), alternando esse lado mais
crítico com o humor e com a confissão de fascínio
pela oportunidade de viver duplamente, tomar atitudes dúbias, incomuns
(possuir duplo sexo, no caso de Lotte).
O "outro" de Adaptação
é Donald, irmão gêmeo de Charlie Kaufman no filme.
Ele é o oposto de Charlie: bem sucedido com as mulheres, grosseiramente
expansivo, comunicativo. Para enfatizar a – por si só óbvia
demais – categoria de duplo ego que o filme trabalhará, Donald
faz um curso de roteiro cinematográfico com O’Keefe, um autêntico
Syd Field que ensina toda a receita de bolo da narrativa clássica
veementemente rejeitada por Charlie. Uma das principais dicas do professor
de Donald é a não utilização de voz em off
(abundantemente explorada em Adaptação) ou flash-backs
explicativos (recurso satirizado na genial cena da lembrança de
infância do chimpanzé de Lotte em Quero Ser John Malkovich).
Uma vez que confunde a obra do roteirista com a própria vida dele,
o filme consubstancia também uma crise de criação
a uma crise de identidade. Charlie precisa adaptar para o cinema um livro
de difícil abordagem cinematográfica, que fala de orquídeas
e da relação oriunda do contato entre uma jornalista e o
pesquisador de espécimes raros da planta (Meryl Streep e Chris
Cooper, respectivamente).
A dificuldade que sente ao parar diante da
máquina de escrever é diretamente proporcional à
sua dificuldade na vida social, sempre travada pela timidez, pelo complexo
de rejeição, pela falta de autoconfiança. A pergunta
que surge é simples: o que terá levado Charlie Kaufman a
decidir incluir, num roteiro que aparentemente se origina de uma proposta
de adaptação literária propriamente dita, um auto-retrato
(não importa se verdadeiro ou falso) tão depreciativo? A
única resposta possível – e que carrega consigo o diagnóstico
de picaretagem – interrompe qualquer admiração pelo filme:
a falta de bons argumentos se mostra como (triste) constatação.
Sim, o roteiro nasce de uma incapacidade, fermenta tal incapacidade e,
o pior de tudo, esforça-se ao longo do filme para transformá-la
em sua grande virtude. Incapacidade de ser, tanto para a personagem quanto
para a narrativa. Narcisista às avessas, o filme perde mais tempo
falando de seu atribulado processo de composição que de
qualquer outra coisa que poderia provocar maior interesse.
Charlie começa o filme como o homem
não empreendedor, anti-herói por excelência, que nada
consegue realizar após o término do trabalho anterior. Não
acompanha a cadência da vida da mesma forma que o roteiro não
acompanha a evolução do filme (se é que assim se
pode dizer), como se houvesse uma metragem se prolongando e uma narrativa
que ameaça começar, mas adia sua chegada constantemente.
E assim progride a estrutura leviana de Adaptação,
atingindo um ponto em que a cara-de-pau se reveste de redenção:
Charlie consulta O’Keefe, agradece pelas dicas e atravessa a reviravolta
que inocula no filme (que estamos vendo e que é também o
que está sendo escrito) todos os elementos antes blasfemados por
ele mesmo: sexo, drogas, armas, perseguição, morte, transformação
das personagens. A interseção forjada entre os universos
diegéticos do filme serve principalmente para mostrar que nenhum
deles se sustentava isoladamente, daí a necessidade de imbricação
e de confusão – o roteiro nem adaptou o romance nem se manteve
como ensaio auto-referente, banalizando ao máximo os papéis
(apesar das boas atuações de Chris Cooper e, surpreendentemente,
Nicolas Cage). A morte será a de Donald, e eis que aí se
encontra a chave da redenção. Ao eliminar o duplo que de
certa forma o oprimia, Charlie consegue recuperar sua própria identidade.
Puro vampirismo: sugando a energia vital do outro ele restitui a sua,
supera o não-ser, transmuta-se, sente-se apto a buscar o amor (a
menina de quem gostava, mas não sabia como conquistar). É
a jornada do herói romântico típico, alcançada
através de uma brincadeira metalingüística sem propósito
reconhecível – diferentemente de uma comédia como Vivendo
no Abandono (Tom Dicillo, 1995), que opta pela metalinguagem, escolhe
um caminho totalmente distinto do de Adaptação e
funciona muitíssimo bem.
A tentativa de ser por intermédio
de um "fora" não se exprime mais pelo túnel lamacento
e sombrio que conduz uma pessoa ao cérebro de um ator famoso, mas
sim pela artificialidade propiciadora da autotransformação,
que Charlie toma emprestada de Donald e O’Keefe. Enquanto o roteiro de
Charlie Kaufman se empenhava em reproduzir o mundo real, onde as pessoas
não vivem se re-situando a partir de um clímax gerador de
processo catártico, ele não se realizava de maneira alguma.
Somente quando adere ao clichê da produção cinematográfica
convencional (que paradoxalmente se pretende realista) é que consegue
transpor o denso matagal que o encobria e colher as flores da libertação,
como indica o plano final (de bastante mau gosto, diga-se de passagem).
Novamente vemos a dupla Kaufman/Jonze enredar
situações bizarras (o ataque dos crocodilos é um
bom exemplo) patrocinadas por tipos não menos extravagantes (o
desdentado especialista em orquídeas foi tudo que eles conseguiram
desta vez – embora o próprio Charlie se apresente um tanto patético
e faça as honras do zoologiquismo que já se tornou marca
registrada da dupla). A impossibilidade de se livrar do primeiro filme
se expressa tão logo tem início Adaptação:
um making of em vídeo mostra Charlie Kaufman sobrando no
set de filmagem de Quero Ser John Malkovich. Depois de levar uma
bronca por estar onde não deve, atrapalhando o enquadramento, ele
se retira e vai chorar suas mágoas fora dali. Por mais que parta
do filme anterior e retome uma parcela de sua temática, Adaptação
não consegue estabelecer um diálogo natural entre os dois
trabalhos de Spike Jonze. O diretor, aliás, parece extremamente
inexpressivo nesse segundo filme, como se tivesse deixado tudo nas mãos
do roteirista (e, de fato, é o que ocorre), o que acaba por criar
uma estranha sensação de que aquele é um filme que
não precisa ser visto, apenas ouvido, como se alguém lesse
o roteiro em voz alta dentro da sala de cinema. A visita ao set de Malkovich
se repetirá em outro momento do filme – e a sensação
transmitida será a mesma do início, ou seja, a de que aquela
cena está ali menos por haver um tecido de continuidade entre os
filmes do que para tapar um buraco. Tão preguiçoso quanto
o trabalho de Jonze é o meta-roteiro de Kaufman, que definitivamente
não engrena. E, como resultado, o filme como um todo não
engrena, não empolga, não diz para o que veio.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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