Acquaria,
de Flávia Moraes
Acquaria,
Brasil, 2003
Uma premissa: grandes
filmes (das mais diferentes expressões do cinema) têm uma
dinâmica de funcionamento comum - são a expressão
de um conceito, de um movimento estético-moral que os delineia
na tela. Mesmo produtos do cinema mais mecanizado (vide a cinematograficamente
desprezível grife de Xuxa) precisam, para realizar-se, dar conta
de um conceito central, dinamizado em torno de um projeto que atravessa
trama, roteiro, luz, som e elenco, dando fruto ao que recebemos como um
conjunto-filme. É justamente nisso, em sua premissa básica,
em seu conceito (ou "projeto", falando na linguagem mais corrente),
que esse pequenino filme de Flávia Moraes começa a se esfacelar.
A proposta de se fazer
um filme estrelado pelos ícones da música pop-sertaneja
Sandy e Júnior, desde o começo, se colocava como uma encruzilhada
onde dois movimentos possíveis devem ser analisados:
De um lado, a possibilidade
de um filme em que a imagem de Sandy e Junior seria trabalhada abertamente,
jogando com a iconografia da música pop brasileira, no sentido
de uma musical farsa cinematográfica (que já deu frutos,
no Brasil, a desastres como a filmografia de Xuxa ou pérolas da
cultura de massa como certas experiências de Roberto Carlos no cinema).
De outro lado, havia a possibilidade de se apostar num cinema supostamente
"sério", que vestisse a carapuça de uma dramaturgia
independente das premissas simbólicas já acumuladas em torno
de suas estrelas.
Nesse sentido, Acquaria
opta pelo segundo caminho, muito mais corajoso do ponto de vista do
marketing e do retorno de público (é muito mais fácil
fazer o que Diller Trindade faz com a senhora Meneghel, convenhamos),
mas de certa forma, covarde e cínico na forma de se apresentar
ao público. Isso porque sua suposta máscara de sobriedade,
essa opção purista por um gênero (a ficção
científica) ou a utilização dos nomes completos de
seus astros nos créditos, explicitam um desejo de vender o filme
como uma expressão cultural independente – como uma valorização
de Sandy e Junior não como os signos penetras (que são)
no campo simbólico do cinema, mas como estrelas puras da telona,
por méritos que estariam longe de sua fama pré-concebida.
Ao contrário de tantas outras estrelas, Sandy (e seu irmão
menos talentoso), tenta provar que pode sustentar a dramaticidade de um
filme de 90 minutos utilizando ao mínimo as atrações
relacionadas à sua milionária carreira de cantora. Uma postura
louvável, pensaríamos num primeiro instante, mas é
aí, em verdade, que se apresenta o grande problema do filme.
Pois, sejamos mais
diretos: se é para ser um filme de Sandy e Junior sem "Sandy
e Junior", porque então não fazer um filme com bons
atores profissionais (os dois são, no máximo, esforçados)
e dando à trama uma liberdade para além das exigências
comuns à essas estrelas? Se era para ser um filme de Sandy e Junior
sem "Sandy e Junior", o que justifica a presença
deles ali senão funcionar como isca, como chamariz midiático
para um filme muito, muito fraco? Teria Flávia Moraes se aproveitado
dessa máquina de fazer dinheiro meramente para viabilizar seu projeto
(que parece querer ignorá-los enquanto signos culturais)? Qual
o valor do filme, então, se o alicerce de sua construção
é tratado quase como um problema a ser superado, a priori? Porque,
se o recorte for diretamente ao constructo fílmico, não
teremos ali mais do que um objeto infértil de imitação
e aí, caros leitores, o buraco fica ainda mais fundo e bem menos
interessante.
O resultado é
que, com um roteiro funcional, uma direção esmerada em mostrar
habilidades desnecessárias e uma bela fotografia de Lauro Escorel,
Acquaria não consegue passar de um filme banal, básico,
elementar de ficção científica, que repete (sem qualquer
brilho de novidade) uma meia-dúzia de clichês do gênero,
não se colocando diante deles com qualquer postura de interação
senão a mímese canhestra. Se a paródia (para a qual
Os Trapalhões conseguiram arrastar algumas estrelas pop dos anos
80) passa longe do mundo asséptico da dupla pop-sertaneja; se a
crítica apaixonada à cultura de massa (como na pérola
Roberto Carlos Em Ritmo de Aventura, de Roberto Farias) está
há anos-luz das pretensões de sua diretora, resta a Acquaria
esse caminhar manco de um filme que não quer ser o que é,
que quer se fazer passar por uma suposta e longínqua "nobre-arte
do cinemão", e não percebe que estaria bem ali (na
sujeira que tenta colocar debaixo do tapete), no seu ranço de cultura
pop-mastigada, a possibilidade de algum brilho.
Tentar vender um filme
de "Sandy e Júnior" como um filme "como outro
qualquer" foi não apenas um equívoco de projeto, uma
tremenda peça pregada ao público. Mas, principalmente, um
movimento perigoso para o cinema: porque seria tenebroso ver como solução
viável para um cinema juvenil no Brasil, ter de se amuletar de
forma cínica no capital midiático desses penetras. E aqui
não está uma condenação de uma aproximação
vivaz, dessa possibilidade de curto-circuitar, por exemplo, Kelly Key
com pornochanchada, Netinho de Paula com sitcom, mas sim a firmação
de que isso pode ser feito (e é louvável que se faça)
com alguma inteligência, apuro técnico-artístico e,
principalmente: com a honestidade de se alegrar com esse processo (e não
de tentar disfarçá-lo).
Que não se
vendam, oh céus!, Sandy e Junior como atores "de verdade".
Eles não são. Eles são Sandy e Junior e só
significarão alguma coisa no cinema se assumiram suas máscaras
pré-concebidas não apenas como chamariz de marketing para
vender o filme, mas como elemento criativo e pulsante (e isso não
significa enxertar um videoclipe no meio da narrativa, por favor!). Como
sintoma, Acquaria, ao menos, pode ser útil em atestar que,
no quesito da parceria entre o universo da música pop e o cinema,
os diretores (e produtores) brasileiros, ainda tem muito o quê ensaiar
(ou provar).
Felipe Bragança
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