A Carta,
de Manoel de Oliveira


La Lettre, Portugal/França, 1999


Chiara Mastroianni e Leonor Silveira em A Carta de Manoel de Oliveira

Não se sai impunemente de A Carta. Guarda-se o olhar hierático de Chiara Mastroianni olhando para fora da tela, até sabermos que seu olhar é direcionado para seu futuro marido, o príncipe de Clèves; guarda-se o rosto um tanto patético de Pedro Abrunhosa ao olhar para sua amada; guardam-se os olhos de Leonor Silveira, olhando com resignação para a amiga que não poderá jamais ter o homem com quem sonha. A Carta é esse complexo jogo de olhares que não se entregam, olhares que nunca são diretos e imediatos. Todos os olhares nesse filme de Manoel de Oliveira miram para fora da tela, para um contracampo que certamente encontrará outros olhos, mas apenas à distância.

É que em A Carta o que se filma não é propriamente um acontecimento. Rigorosamente falando, nada acontece. Mas a beleza do filme se revela entre cada ato ou palavra que permeia os corpos e movimentos. Pois a arte de Oliveira não se manifesta somente nos enquadramentos, nas iluminações e na disposição das coisas e pessoas diante da tela. A arte de Oliveira está no fato de que ele tenta filmar o vazio, aquilo que sempre se furta ao olhar, aquilo que de sempre imediato e constante é impossível que se veja sem se manter um pouco imóvel. Sim, esse vazio que Oliveira busca tem nome; aliás, tem dois: a arte e a História.

Sabe-se que Oliveira tem um amor especial pelas obras do passado, um amor que excede o ideal clacissista e um tanto frouxo de um Kenneth Branagh ou de um Terence Davis. Não há clacissismo em seus filmes. Pelo contrário, uma significação nada imediata e, de imediato, uma enorme interrogação a respeito do objeto de eleição para caracterizar a obra. Por que Madame Bovary para O Vale Abraão? Por que reproduzir a Princesa de Clèves, livro de Mme. de Lafayette distante de mais de 300 anos de nosso tempo e, pior, sem um aparente porquê? Porque é justamente para filmar o tecido de trezentos anos que A Carta serve. Não é de forma alguma para dizer que a literatura permanece grande apesar da passagem dos tempos (sentença mais de padre do que de literato) ou que em 300 anos tudo continua da mesma forma, o homem não passa de uma marionete. O que há para ser "contado" em A Carta são os interstícios do tempo.

A história em pouca coisa muda do escrito para o filmado. Mme. de Chartres guia sua filha pela sociedade aristocrática (transposta, não sem muito estranhamento, aos dias de hoje). A filha tenta fugir dos apelos do M. de Guise, que se diz apaixonado. Numa joalheria (lugar do dinheiro), a Mlle. de Chartres olha, por cima de uma jóia bela e cara, para seu futuro marido (a encenação de Oliveira obriga o espectador a saber que será seu marido). Tornada Mme. de Clèves, sem verdadeiro amor, conhece Pedro Abrunhosa, famoso cantor português, com fama de bon vivant, mas que se diz perdidamente apaixonado por ela. Mme. de Clèves o ama igualmente, mas manterá — ajudada pela amiga freira — seu amor irrealizado até o fim. Há um estranho anacronismo ao recolocar essa história em nosso tempo. E Manoel de Oliveira, ao invés de atenuar esse anacronismo, faz questão de demarcá-lo rigidamente, com toques de mestre. Na primeira cena, um homem toca o saxofone, num grande palco de show de rock. É o artista que abre o show para Pedro Abrunhosa, verdadeiro rock star português, ele próprio (ele não interpreta, ele é quem é na vida real) um cantor anacrônico: canta baladas de amor, hard rock, rap e crossover.

A mestria da mise-en-scène de Oliveira é impressionante. Com alguns planos, a intriga estará toda pronta: primeiro, o M. de Clèves vê sua futura esposa numa festa; em algum lugar remoto, Abrunhosa dá um show; mais tarde, é a vez da futura esposa olhar para M. de Clèves e, num futuro próximo, desposá-la; depois de casados, vão ao Centro Cultural Gulbenkian e assistem a uma apresentação de Abrunhosa. Sem uma palavra sobre o assunto, a intriga já está montada: a Mme de Clèves está casada com um homem que não ama, e o homem por quem está apaixonada será para sempre inacessível. Será necessário, então, fazer com que os dois olhares jamais confluam. Tratar-se-á, para a Mme. de Clèves, de impedir para sempre que um possa olhar para outro. É por isso que o filme muda completamente quando Abrunhosa é apresentado à Mme. de Clèves. Até então, o filme funcionava como um desencadeador de encontros; seu ritmo era, se não frenético, ao menos rápido; depois do encontro, passa ao ritmo de uma longa espera, a espera do desfecho para sempre adiado, e que só terá fim com a missiva do final do filme.

A segunda parte do filme, então, será uma questão de olhares. Daí a astúcia de Oliveira ao fazer com que, quando Chiara Mastroianni vê Abrunhosa roubando a sua fotografia, só se observe o ser amado do pescoço para baixo. Ou quando, no parque, Abrunhosa saberá que seu amor é correspondido, ele só poderá ouvir o casal conversando por trás dos arbustos que separam as duas alas do parque. Ou ainda quando a princesa sai correndo do parque e entra em casa, vai para a janela e imediatamente encontra a face do amado na janela em frente à sua, olhando para ela, tudo está perdido, pois o contato foi feito e ela estará perdida se não fugir definitivamente.

Mas como o perfil de roqueiro de Abrunhosa acrescenta à história? Por que não fazer uma reconstituição de época?, poderiam perguntar. Só que a pergunta não parece apropriada. Toda a aposta do filme está nessa tensão de trezentos anos. Está na brusca passagem de um registro histórico de hoje, o show de rock, para um registro histórico de uma época remota (o ambiente aristocrático, os códigos de relacionamento...) Porque, ao curto-circuitar trezentos anos de objetos culturais (quadros, jóias, calçados, música, arquitetura, interiores), Oliveira faz o espectador transportar-se para um lugar que não é o de hoje nem o de ontem. É o lugar do hoje como um ontem (alienação do "natural" como aquilo que é o mais estranho) é o do ontem como um hoje (aquilo que nos parece estranho como sendo "o mais comum"). Não é que em seus filmes nos transportemos para algum lugar específico. É justamente por realizar esse curto-circuito de trezentos anos que nós nos colocamos em lugar nenhum.

As escolhas estéticas de A Carta são sempre as mais perfeitas, sobretudo no que tange à interpretação. Tratando-se de uma história de necessidade (a lição de O Vermelho e o Negro de Stendhal: dadas as condições tal e tal, o personagem tende naturalmente a...), Oliveira recorre a uma relação bressoniana com os atores: o ator é apenas um suporte, ele não se move, ele é movido. E dessa forma os atores estão fantásticos: Chiara Mastroianni, leve e exata; Abrunhosa, risível (o conflito de época exige) e impassível. O modelo bressoniano faz de A Carta um exemplar como poucos do cinema. Assumindo-se como uma encenação de passividades (não se age, não há ação: só se padece), A Carta faz com que só haja fluxos ultrapassando a tela. Fluxos de crença, fluxos de amor, fluxos econômicos. Nunca se vê a instância da proibição ou a "naturalidade" de um ato. A Carta é um filme despido de essências, onde só age a contingência. Daí não haver essência humana, daí ser um filme despido de todo humanismo: não é a essência humana que te faz, são tuas crenças, e são elas que te levarão à fatalidade.

Estranha carta que aparece ao final do filme. Ela é lida pela amiga freira (interpretada por Leonor Vieira, atriz oliveiriana). Nela a princesa revela que conseguiu encontrar-se numa missão religiosa contra a fome em África. É com a sublimação mais forte e com o padecimento da carne (ela passa fome) que o amor será eliminado. Ao término da carta, a freira percebe que o toque para se alinhar no pátio já foi dado. Ela corre apressada, mas a câmara nos dá o tempo de observar o convento. Esse convento é a própria prova da permanência do tempo, ele que reúne todos os trezentos anos em que se passa do livro à tela. É a História que se faz. E não se faz à toa. Ela se faz por signos específicos: os signos da arte. Pode vir à mente a parede ornada em amarelo da casa da princesa, de uma beleza distante e muito mais significativa que os ornamentos vazios do Goya de Saura, por exemplo. Ou então Abrunhosa, com um par de tênis escandaloso, olhando para Baco cantando os ditirambos de Dionísio. Os signos da arte não servem só para embelezar ou para agradar. Os signos da arte dão a dimensão da História. Os signos da arte revelam a verdade.

Ruy Gardnier.