Abril
Despedaçado,
de Walter Salles
Brasil/Suiça/França,
2001
Quase Nada
Depois de quase um
ano de atraso e muito bafafá à espera do filme, Abril
Despedaçado não é nada do que se esperava dele.
Não é um filme forte, pungente, ou ao menos um filme com
uma mensagem contundente como o eram Central do Brasil e O Primeiro
Dia. Não é um filme para criar grandes dissidências
entre os que gostam e os que não gostam – o meio-termo parece o
mais apropriado. Não porque seja um filme de nível médio,
com alguns acertos e tantos erros. E sim porque é um filme vazio
estéril, que a título de uma universalidade proclamada (senão
autoproclamada a cada fotograma), consegue chegar ao cúmulo de
não falar sobre nada. Ou, o que é sinônimo, falar
sobre o mesmo. Mesmice.
De Walter Salles esperávamos
talvez esse caminho rumo a uma "linguagem universal", essa quimera, essa
balela difundida aos quatro ventos que é o "contato com o público"
que ele já tinha realizado, aqui dentro e lá fora, com Central
do Brasil, sem necessariamente conceder ao exotismo. O que não
se esperava era o virtuosismo técnico que oprime o filme inteiro,
a extrema necessidade em fazer tudo "bonito", em que todas as imagens
sejam incrivelmente plásticas, que todo momento do filme seja grave,
poético ou tenso. O que transforma Abril Despedaçado
num filme que não respira, que em momento algum consegue atingir
um peso próprio de ficção, uma sensação
de verdade. Podemos imaginar os motivos: Walter Carvalho voltando de fotografar
Lavoura Arcaica, um filme que realmente pedia essa fotografia "toda
estética", a pressão dos produtores em fazer um filme vendável
aos quatro cantos do mundo, ou a tão lembrada vontade de ganhar
o Oscar de filme estrangeiro. Pouco importa: o filme revela-se falso,
distanciado, em terceira pessoa (uma verdadeira façanha negativa
quando o filme tem personagem-narrador!).
Abril Despedaçado
herda do romance homônimo de Ismail Kadaré o argumento
principal: uma vendeta entre duas famílias vizinhas que acaba destruindo
a vida de todos ao redor. Dentro desta situação, um homem
tem a chance de acabar com essa rivalidade. Logo, é um relato que
tenta mostrar como um código de honra absurdo pode acabar com a
vida de pessoas que têm pouco ou nada a ver com o assunto além
dos laços de sangue. Um filme sobre liberdade, pois. Só
que não é isso que aparece na tela. O que se vê na
linguagem de Abril Despedaçado é tudo aquilo que
o próprio relato do filme vai contra: uma submissão incrível
a uma lógica transcendente de feitura (a do filme estrangeiro exportável,
com criancinha e mensagem humanística), um tatibitate inacreditável,
uma facilidade de leitura que, ao contrário de criar uma maior
possibilidade de comunicação, acaba com qualquer possível
mistério ou atmosfera que o encaminhamento do filme possa ter.
O filme segue o percurso
dos irmãos Tonho e "Menino" (alusão a Vidas Secas?),
que são presas da vendeta que já lhes levou um irmão.
Tonho, interpretado por Rodrigo Santoro, é o próximo a ter
que cometer um assassinato e, assim, tornar-se jurado de morte. Ainda
jovem, sem conhecer o amor (a única cena realmente forte do filme
é sobre o amor, entre um excelente Everaldo Pontes e Santoro),
ele cumpre seu desígnio e passa a ter a morte a espreitá-lo.
Ao mesmo tempo, passa no paupérrimo vilarejo um casal de gente
de circo, que levam as atenções de Menino e de Tonho para
a cidadezinha mais próxima. Assombrado pela idéia de morrer,
Santoro corre atrás da moça para conhecer o amor.
Mas o regime narrativo
de Abril Despedaçado quer deixar tudo claro demais. A moça,
de passagem, dá a Menino um livro, que é como ele foge de
sua vida pobre e opressora. Significado óbvio: a arte é
redentora, ela nos entrega um mundo suplementar ao nosso. Além
disso, a única diversão de Menino é um balanço
preso numa árvore. Significado óbvio: o vôo dos pássaros
como metáfora da liberdade. Quando Santoro encontra a linda circense,
o que ela faz? Malabarismos no ar. Significado óbvio: mais uma
vez o vôo como liberdade. Mas essa moça é também
uma espécie de prisioneira de seu parceiro de circo. Como fugir?
Fazendo amor. Significado óbvio: sexo como expressão da
liberdade (e não mais do que isso, porque a cena é asséptica
demais para qualquer significação mais picante).
Se o filme já
vai mal desde o começo até o desenvolvimento, é no
final que ele atinge seu ápice. Num jogo decisivo (que nos furtaremos
de contar), um sacrifício é cometido. Alguém morre
voluntariamente em função de outro alguém. Ao lado
da figura do sacrifício, tão comum e geralmente abjeta no
discurso romanesco – o subalterno que se mata para fazer viver o verdadeiro
herói –, ajunta-se outra, a da arte como "outro mundo" ao qual
só se pode aceder no momento da morte. A cena é tão
mais obscena quanto gratuita, simplesmente lacrimejante. Na última
seqüência, uma improvável e espúria mistura de
Deus e o Diabo na Terra do Sol com Os Incompreendidos fecha
a fatura. Pendura a conta, garçom!
Ruy Gardnier
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