O Abismo de um Sonho,
de Federico Fellini


Lo sceicco bianco, Itália, 1952


Uma figura distante sobre um camelo, com turbante e trajes esvoaçantes característicos de uma personagem das Mil e uma Noites, contemplando a vastidão insondável do deserto, como preparando-se para mais uma aventura: esta é a primeira imagem que vemos em O Abismo de um Sonho, imagem que evoca um universo distante, exótico, fantástico, extraordinário.

Ao fim dos acordes de Nino Rota, esta paisagem onírica é substituída por outra radicalmente diversa: uma estação de trens em Roma, lugar onde tantos sonhos começaram a desvanecer entre a fumaça ou simplesmente desapareceram na multidão. É preciso uma vontade inabalável, uma obsessão ou a mais pura inocência (ou ainda a mais pura estupidez) para preservar um sonho num lugar como este. E é justamente uma mistura das três (ou mesmo das quatro) características acima que vemos estampada no rosto de uma jovem e bela mulher, Wanda Cavalli (Brunella Bovo), chegando à capital em companhia de seu marido Ivan (Leopoldo Trieste) para a lua-de-mel.

Aliás, a lua-de-mel seria, do ponto de vista de Ivan, um pequeno-burguês interiorano cheio de si, um item a mais (o menos importante, com certeza) em sua agenda cuidadosamente elaborada de compromissos sociais que culminaria com uma audiência coletiva de jovens casais com o Papa. Também para Wanda a lua-de-mel é secundária: ela tem um desejo secreto de encontrar-se com o Xeque Branco, a personagem que habita seu imaginário romântico despertado e alimentado pelas fotonovelas que protagoniza. Munida de uma carta de teor impessoal, vaga e genérica, ela sai em busca de seu herói. Para desespero de Ivan, ela o encontra e passa o dia em sua companhia, num arremedo (permeado da realidade mais vulgar) das aventuras do Xeque sorridente. Ivan tem que recorrer à pouca imaginação que tem para despistar os parentes da capital, ávidos em conhecer a jovem esposa. Ao fim da jornada de ambos, resta um quarto de hospício, palco do reencontro do casal desiludido. A reconciliação virá finalmente de maneira compulsória, mas honesta, na caminhada em direção ao Papa.

O Abismo de um Sonho é o primeiro filme assinado exclusivamente por Fellini (que dois anos antes havia co-dirigido com Alberto Lattuada o Luci del Varietà -- Mulheres e Luzes), e nele já podemos reconhecer tudo o que seria desenvolvido e reconhecido em obras posteriores como marca, função ou poética felliniana. Mais do que isso, o que desperta curiosidade e interesse, além do pleno domínio das faculdades cinematográficas (herança da colaboração com Rosselini, Pietro Germi, Suso Cecchi d'Amico e Zavattini, entre outros), é o frescor da realização. Abismo é a primeira aproximação de Fellini ao eixo temático sobre o qual repousa toda sua aventura cinematográfica: a realidade contaminada pela fantasia e vice-versa. Esta questão surge de uma forma menos "mediada" -- ou seja, sem a presença dos elementos barrocos característicos da mise-en-scéne tipicamente felliniana --, grau zero de um estilo que caminharia a passos largos para o maneirismo a partir de La Dolce Vita.

Assim, em Abismo, tal como em I Vitelloni e Un'Agenzia Matrimoniale (seu episódio para L'Amore in Città), as marcas do real são mais visíveis, sua presença é mais natural e cumpre uma função bem determinada (e sumamente negativa) nas desventuras de suas personagens. Não se trata da expressão mais autêntica, como alguns preferem, mas da etapa inaugural, riquíssima, da obra do maestro.

Assistir a O Abismo de um Sonho é redescobrir a obra de Fellini. Oportunidade rara, com direito a cópia nova e exibição em tela grande e sala escura, seu verdadeiro lugar.

Fernando Verissimo