Abaixo ao Amor, de Peyton Reed

Down With Love, EUA, 2003

O que significa tentar reconstruir uma imagem? Abaixo ao Amor é um filme que se dedica justamente a capturar uma imagem especifica, não uma imagem "verdadeira" (não há aqui qualquer pretensão de imaginar que esta imagem seja realista), mas uma que se sabe de antemão ser uma produção que era realizada em série. O cinema (em particular o americano, mas não só ele) já se dedicou muitas vezes a fazer este tipo de operação, mas poucas vezes ele se deu de forma tão interessante quanto neste Abaixo ao Amor.

O filme já se posiciona à parte da maioria das tentativas do tipo na opção de recorte: não se vai aqui buscar como modelo nenhuma obra-prima particular, mas as comédias de Rock Hudson e Doris Day. Não se trata, aqui, de preferência pessoal do realizador, porque a relação do filme com o seu modelo é bem diferente, por exemplo, daquela que se vê num Longe do Paraíso: Peyton Reed e sua equipe sabem que estes filmes são no máximo bons passatempos, exemplos do cinema industrial hollywoodiano em pleno vapor. Não será surpreendente perceber ao longo da projeção que o foco do filme é bem menos especifico mas se expande para a comédia de Hollywood entre a metade da década de 50 e a de 60 em geral. Vale dizer também que o próprio Abaixo ao Amor não tem aparentemente nenhuma intenção de ser mais do que um filme da produção em série da indústria. As coisas se tornam especialmente interessantes porque os cineastas aqui são relativamente jovens e obviamente não experimentaram estes filmes na época. Existe uma diferença entre o know-how técnico a disposição dos cineastas para imitar os seus modelos e o quanto eles realmente os conhecem. E, o melhor de tudo é que eles sabem muito bem disso.

Retornamos a pergunta que abriu este texto. Porque é justamente ela que acaba entrando em jogo aqui (de forma bastante natural). O diretor Peyton Reed tem experiência no assunto, tendo começado a carreira dirigindo remakes para a TV de filmes da Disney (como Se Meu Fusca Falasse...). O que significa reconstruir uma imagem e até onde tal processo pode ser carregado? Reed sabe que a Hollywood de 2003 pode até sonhar com o seu auge, mas não tem como reproduzi-lo de fato. Afinal com todo o primor técnico que o filme possa ter, não há como ele não estar contaminado com um olhar de 2003. Não deixa de ser significativo que 1963, o ano da ação do filme, seja curiosamente um dos momentos críticos do período final do sistema de estúdios (algo que Reed e sua equipe parecem ignorar ou fazer de conta ignorar). Não é a toa que neste, filme onde tudo se resolve em superfícies, a trama que se desenvolve não deixa de tratar de tentativas (condenadas) de construir imagens. Estranho filme, onde um olhar de 2003 sobre 1963 não deixa de acabar por construir um olhar de 1963 sobre 2003. Processo de contaminação difícil de descrever. Acaba lembrando de alguma forma as (afora isto absolutamente diferentes) atualizações de obras clássicas que Manuel de Oliveira fez.

Abaixo ao Amor é um objeto difícil para a crítica que, não à toa (salvo exceções), acabou por simplesmente reproduzir seu press-release. É tão eficiente como comédia e tão obcecado com superfícies que desaparece facilmente diante de nós. Nada mais normal num filme sobre imagem do que se resolver na superfície dela mesmo. Pena estarmos cada vez mais cegos diante delas. Abaixo ao Amor é um filme que sabe muito bem o que é e o que faz. É uma destas pequenas belas anomalias que Hollywood às vezes nos traz.

Filipe Furtado