8
Mulheres,
de François Ozon
8 Femme, França, 2002
Não existe amor feliz
"Mon bel amour
mon cher amour ma déchirure/ Je te porte dans moi comme un oiseau
blessé/ Et ceux-lá sans savoir nous regardent passer/ Repétant
après moi les mots que j`ai tressés/ Il n`y a pas d`amour
heureux".
Louis Aragon
Em uma mansão
isolada pela neve, um homem é assassinado. O autor do crime? Oito
suspeitos, oito mulheres - e uma delas é a culpada. A síntese
do último filme de François Ozon poderia ter sido tirada
de um jogo da Estrela, no melhor estilo Detetive, e é isso que
mais assusta antes de entrar no cinema. Isso e a divulgação
da imprensa que o apresenta como um projeto à la Almodóvar,
extremamente fashion, com oito super badaladas estrelas da velha e nova
geração francesa desfilando num cenário forçadamente
kitsch, de cores absurdas explodindo nos olhos. Enfim, levando
em conta que sub-produtos de Almodóvar são hoje tão
comuns quanto sub-produtos de Tarantino e Woody Allen (nomes que soam
como grifes culturais) é difícil impedir o temor de ver
uma pirataria oportunista. Mesmo tendo consciência que um cineasta
original está à frente do projeto, nunca se sabe ao certo
se vai haver personalidade suficiente para evitar aquela malandragem que
retém apenas alguns fetiches estilizados do universo de um autor
referência. E ainda por cima tem a história : a velha e desgastada
trama de mistério.
Mas basta que as luzes
da sala se apaguem para perceber que nada disso está presente,
que tanto Almodóvar quanto Agatha Christie estão distantes
desse espetáculo de musas e que o que interessa para Ozon é
brincar com as convenções. É o mesmo Ozon do renomado
Sitcom, dissecando as estruturas, não como o cirurgião
de uma autópsia previsível, mas como um cientista maluco
que junta pedaços para fazer um Frankenstein.
Oito mulheres, portanto,
todas ligadas ao homem assassinado. Todas as gerações estão
presentes, com personalidades a princípio definidas: Danielle Darrieux,
a matriarca doente e frágil que todos amam respeitosamente; Catherine
Deneuve, a esposa segura de si, conservadora e preconceituosa; Isabelle
Hupert, a tia solteirona e fuxiqueira; Fanny Ardant, o oposto de Deneuve,
a liberal charmosa, femme fatale com pinta de detetive; Firmine
Richard, a governanta dedicada e carismática; Emmanuelle Béart,
a empregada misteriosa e calada; Virginie Ledoyen, menina bem amada e
certinha; Ludville Seigner, caçula bagunceira e pentelha cheia
de energia.
Enfim, os estereótipos
estão lançados, e não é preciso dizer que
Ozon vai mexer com eles. No desenlaçar da trama, as personalidades
vão se trocando, os papéis se invertendo e logo se percebe
que tanto a tia solteirona pode virar uma vamp sensual quanta a velha
respeitosa revelar-se uma beberrona criminosa, ou ainda que a menina inquestionável
deitou com o pai, que a femme fatale de ar blasé também
tem momentos de insegurança, assim como a burguesa preconceituosa,
que acaba não conseguindo esconder seu desejo de jogar nos dois
times.
As situações
chocantes se multiplicam como as cores berrantes no cenário – do
qual Ozon conhece todos os atalhos, visto a noção de espaço
que o diretor prova. E esse choque constante, casado com o esplendor visual,
parece ser a saída para ele dominar seu espectador, como se Ozon
se sentisse na obrigação de colocar a barra cada vez mais
alto, não por apelação gratuita, mas por outro motivo
muito mais nobre. Ei-lo: Oito Mulheres não é um filme
de detetive, e nele pouco interessa a verossimilhança ou a trama
em si. Usando um vocabulário hitchcokiano, pode-se dizer que Ozon
ignora o McGuffin. Já na metade do filme, pouco importa quem é
o verdadeiro assassino, simplesmente porque o diretor desvia o tempo todo
a atenção para as personagens e suas obscuridades e contradições
internas, muito menos para confundir as pistas da solução
do mistério do que para criar a cumplicidade patética (mas
terna) que elas irão partilhar. Em vez de nos preocuparmos com
a trama, ficamos é seduzidos e afeiçoados pela fragilidade
dessas oito personagens unidas pelo ridículo da vulnerabilidade,
oito mulheres tão diferentes, e ao mesmo tão semelhantes.
Nada surpreendente
que o número musical que cada uma apresenta ao longo do filme diga
tão pouco a respeito da trama. Colocado como uma abstração
inexorável, eles não ajudam em nada a solucionar o crime.
Na verdade, cada canção lançada fala mesmo é
sobre sua personagem. Quando uma delas canta, sua natureza aparece crua
- é o momento mágico em que a personagem se liberta da função
de ícone e coloca para o espectador o que realmente importa: seus
sentimentos feridos, sua vida de lamentações. Tudo gira
em torno de sofrimentos de amor, de desilusões femininas. E de
todas as cenas musicais, sem dúvida a mais comovente é a
de Isabelle Huppert, cena que transcende a breguice da canção
sem melodia e a estupidez da coreografia. Huppert, que até então
se limitava a um jogo puramente caricatural, abre subitamente o mosaico
de seu talento, de opções dramáticas infinitas, revelando
na mulher defensiva uma alma machucada, quase que pedindo socorro. E assim
segue, como se a cada canção as máscaras do estereótipo
fossem caindo. São nesses momentos, por sinal, que Ozon se liberta,
ele também, de sua simples limitação de estruturalista,
como se no cineasta frio que fica revirando os códigos dos gêneros
florescesse o artista sensível e humano. Por isso as cenas cantadas
parecem fugir das regras do musical tradicional, funcionando muito mais
como uma pausa reflexiva do que uma fonte de energia.
Fica claro, então,
que Ozon não quer falar de crime, mas de amor. E é com orgulho
que ele segue essa tradição mais do que francesa de ver
o amor como um fardo, uma tragédia que marca toda uma vida. As
diferentes gerações do filme estão justificadas :
o caso aqui é de transmissão. Acaba explicado porque o último
número fica com Danielle Darrieux - a matriarca, a velha geração,
a mãe das atrizes francesas presentes, abraça a jovem Ludville,
a nova geração, o futuro personificado, e finalmente entoa
a imortal canção que Georges Brassens fez do poema de Aragon:
"Le temps d`apprendre a vivre il est déjà trop tard/
Que pleurent à la nuit nos coeurs à l`unisson/ Ce qu`il
faut de malheur pour la moindre chanson/ Ce qu`il faut de regrets pour
payer um frisson/ Ce qu`il faut de sanglots pour um air de guitare/ Il
n`y a pás d`amour heureux."*
Sim, não existe
amor feliz. A veterana experiente, com suas rugas, suas marcas de dor
de toda uma vida, passa a herança para a menina de rosto limpo
e ainda virgem de experiências. Foi só uma palhinha. A jovem
mal espera pelo que ainda vai vir: a vida é cheia de complicações,
o amor é uma fatalidade - não existe amor feliz.
Bolívar Torres
* "Quando se aprende a viver já é tarde demais/ Que
chorem na noite nossos corações em uníssono / O que
é preciso de tristeza para qualquer canção/ O que
é preciso de arrependimento para comprar um frisson/ O que é
preciso de choro para um acorde de violão/ Não existe amor
feliz."
|
|