8
Mile Rua das Ilusões,
de Curtis Hanson
8 Mile, EUA, 2002
Pelo menos a se julgar
a partir do Oscar desse ano, Hollywood não tem mais histórias
para contar. Preterindo uma história ainda não contada (Gangues
de Nova York), preferiu premiar filmes como Chicago e As
Horas que, mais do que contar uma história, divertem-se em
mostrar como uma única história já conhecida é
repetida à exaustão, apesar das diferenças de temporalidade
(anos 20-50-90, tanto faz em As Horas) ou dos registros de localidade
(uma prisão é a mesma coisa que um palco, o que importa
é fazer o show continuar em Chicago). Sob esse aspecto,
8 Mile leva uma prevalência assustadora sobre seus colegas
mais "dignos" do ponto de vista da "acadimia": é
o mesmo tipo de ficção à Nasce Uma Estrela,
com todos os clichês do gênero, mas justamente apropriando-se
desse tipo de relato mais do que conhecido consegue criar dissonâncias
interessantes entre vida e ficção, entre mundo e cinema
(Eminem, o protagonista, é de fato um rapper criado em Detroit,
nascido de família desfuncional white trash e "descoberto"
num meio eminentemente dominado por negros), ao passo que os outros filmes
jamais deixam de ser redundantes/reiterativos. 8 Mile parte de
um outro princípio: é um filme que afirma que novas histórias,
mesmo baseadas em arquétipos conhecidos, é possível.
Saber se a vida imita a arte é no fundo irrelevante se é
a vida que te impinge a contar algo.
O filme começa
com a cena traumática: Bunny Rabbit, branquelo hábil nas
rimas, é inscrito num desafio de rappers em que cada um tem pouco
menos de um minuto para difamar o adversário através da
rima ao som da batida. Na hora H, Bunny tranca-se no banheiro, vomita
de nervoso, troca de camisa, sobe ao palco (não sem antes ser impedido
pelo segurança) e, quando chega sua vez, engasga e não solta
nenhuma palavra. Naturalmente, 8 Mile será construído como
a narrativa de um futuro artista que precisa realizar uma série
de peripécias, tomar consciência de sua situação
no mundo para voltar ao mesmo lugar e assumir seu lugar de artista de
talento diante do mesmo público que o viu falhar. Como relato de
nascimento de um artista, o filme convence; como veículo de Eminem
(o que, convenhamos, o filme não é feito para ser), convence
muito pouco em sua tentativa de contrapor um menino dotado e moralmente
santo no meio do decadente meio onde vive.
Mas o forte de 8
Mile não é exatamente um nem outro. O que mais impressiona
no filme de Curtis Hanson (que, como sempre, se limita a entregar um artesanato
bem feito com alguns retoques de elegância) é o retrato do
white trash americano, segmento abrangente de pessoas das grandes
e médias cidades americanas que vivem em subempregos ou com dinheiro
de seguro desemprego. Com tintas nada leves, o filme vai compondo o cenário
de cão em que Bunny vive: mãe morando num trêiler
(uma Kim Basinger impressionante), amigada com um rapaz que foi seu colega
de colégio, a namorada e sua irrefreável sede de sair da
cidade para Nova York, os carros velhos e as casas abandonadas da cidade.
Tudo dá a impressão de uma cidade fantasma ocupada a contragosto
da geografia pelas pessoas. Quanto a Bunny-Eminem, ele trabalha numa fábrica
de carros, realiza trabalho pesado em troca de micharias e ainda tem que
enfrentar um supervisor rígido.
Tamanha raiva contida,
os moradores dos bairros pobres de Detroit poderiam usar para fazer o
discurso do desencantamento da América, como é costumeiro.
Ao contrário, eles preferem utilizá-la para se maltratarem
entre si, mas criativamente, através de desafios que mais parecem
os repentes nordestinos. Nascendo nesse meio e com tanta raiva contida,
é quase natural que Bunny-Eminem custe pouco para se tornar um
mestre do verso. Ele treina em casa, escreve suas rimas num papel amassado,
aprimora seu ritmo com um walkman onipresente, mas só consegue
expor suas rimas aos amigos de rap ou da usina. Para ganhar confiança
e se apresentar ou seja, ter acesso à palavra, ganhar estatuto
social , ele precisa a) cuidar de sua situação familiar,
tirar sua mãe da companhia de um escroque, ganhar a admiração
da irmãzinha; e principalmente b) encontrar uma musa, alguém
que lhe dê inspiração e o faça querer dispor-se
a arriscar (mesmo que depois a namorada prove ser pouco confiável,
Bunny presta tributo a ela até o final).
Naturalmente, o filme
se fecha com a volta ao lugar traumático, com o sucesso no desafio,
com a admiração dos amigos, com o talento revelado: Bunny
é revelado. Artista branco num universo cultural negro, ele é
tão ou mais temerariamente criado do que a maioria deles. É
aí que 8 Mile pára: a busca do artista é a
busca de sua legitimidade dentro de uma comunidade. Eminem, o cantor,
vai além disso: transforma o culto que os jovens americanos fazem
de sua obra uma problematização da própria América,
num circo de horrores que tem tanto de mau gosto quanto de entrega e devoção.
Esse aspecto, sem dúvida o mais interessante da carreira do artista,
fica do lado de fora do filme de Curtis Hanson. 8 Mile é
um filme sobre o advento da fala. E realiza a contento sua intenção.
Ruy Gardnier
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