A Última Noite, de Spike Lee

25th Hour, EUA, 2002

Se A Ultima Noite é o melhor trabalho de Spike Lee em anos (à possível exceção do excelente monologo A Huey P. Newton Story) é porque se trata do seu filme mais sereno até hoje. Curioso que talvez seja justamente isso que acabe por fazer com que ele seja recebido como algo menor. No processo de reduzir alguns de seus excessos, Lee acabou com um filme mais controlado, coerente e bem resolvido esteticamente, mas também fez um trabalho bem menos chamativo que a maioria de filmes anteriores.

Numa das primeiras cenas do filme vemos Monty Brogan (Edward Norton) caminhando com seu cachorro na rua pela manhã. Sabemos pouco dele (que é traficante, que foi recentemente preso, que salvou o cão algum tempo atrás) e ainda não sabemos o porquê deste dia serimportante para ele, apenas o vemos caminhando e conduzindo o cão. Há algo ali, na forma como Lee capta este momento que diz muito sobre porque A Ultima Noite é um filme especial, na forma como o diretor consegue passar a atmosfera de uma caminhada pela manhã por uma grande cidade (e de certa forma o objetivo do cineasta neste filme é exatamente este, captar uma atmosfera).

Monty Brogan tem que se apresentar na cadeia no dia seguinte, vai cumprir pena de 7 anos por trafico de drogas. Ele não vê problema nenhum em ser traficante tirando ter sido pego: tinha um bom apartamento numa região nobre, carro do ano, entrava na casa noturna da moda sem pegar fila. Até mesmo sua bela namorada, ele deve ao que fazia (conheceu ela enquanto trabalhava num playground no meio da manhã). Em mais de uma oportunidade Monty ironiza as desculpas que teria para ter entrado no negócio, se tornou-se traficante é porque era um negócio que lhe garantia este padrão de vida. É exatamente isso que o tráfico de drogas é no filme, um negócio atraente.

Nós simpatizamos com Monty em parte porque foi preso depois de ter sido dedurado e muito porque o filme não é só sobre ele mas sobre como a prisão dele afeta as pessoas a sua volta (vale questionar aqui, a decisão de Lee de nunca mostrar Monty vendendo drogas). Não há duvidas de que Monty é culpado e para nós pode parecer natural que ele pague indo para a cadeia, mas para aqueles próximos a ele (amigos, namorada, pai) não é assim tão simples. Nisso A Ultima Noite lembra muito Faça a Coisa Certa. Como naquele filme, Lee nos lembra de como é impossível fazer realmente a coisa certa para todas as partes, e como a noção de certo é bem menos simples do que gostaríamos que fosse.

Pensemos nos dois melhores amigos de Monty. Frank é corretor de Wall Street, até mais bem sucedido do que o amigo. O que ele faz dentro da lei é tão diferente assim das atividade de Monty?, Frank em certas horas parece se questionar (Monty chega inclusive a confessar que pouco antes de ser preso pensou em se aposentar e entregar o que havia acumulado para Frank aplicar na bolsa). Já Jake (Phillip Seymour Hoffman) é um professor colegial que se sente culpado por se sentir atraído por uma de suas alunas. Quando Monty percebe, ele sugere que Jake espere alguns meses até ela completar 18, sem perceber que o fato de que se estes meses tornariam a situação correta perante a lei, mas não mudariam em nada os sentimentos do amigo.

Impressiona também as similaridades entre o filme de Lee e ‘R Xmas/Natal Negro de Abel Ferrara. Nem tanto pelas semelhanças mais superficiais – serem filmes sobre traficantes que tratem o assunto sem fazer qualquer julgamento sobre suas atividades – e mais por conta de algumas opções especificas de ambos os cineastas. Uma aposta em localizar o extraordinário no banal, de construir com grande cuidado o universo em que os personagens estão imersos (e em deixar claro que ele não existe aparte do nosso) e, especialmente, em como são antes de mais nada filmes que se dedicam a captar um momento especifico de Nova York (no caso de ‘R Xmas, a ultima semana antes do inicio da administração Giuliani).

Apreender um momento. Uma atmosfera. No fundo é a isso que Lee se dedica aqui. Não há muita relação direta entre o ultimo dia de liberdade de Monty e o 11 de setembro (apesar de o roteiro lançar algumas menções a ele), mas Lee encontra lugar para o efeito dele no não-dito e no espaço, especialmente nas cenas externas. Isto não seria possível se Lee não acreditasse no que pode existir de extraordinário em um homem caminhando com o seu cão. A Última Noite praticamente se abre com uma seqüência de créditos criada a partir de uma série de imagens aéreas da cidade, como se a apresentar as intenções do cineasta. A última imagem que vemos é um close de Monty pensativo, tanto ele quanto nós colocados na posição de decidir que final preferimos para o filme. Este rosto também parece estar ali para nos lembrar, uma última vez, que todo este momento só existe na medida que reflete nas pessoas que transitam por ele.

Filipe Furtado