* * * Filmes de amor não são raridade na obra de Julio Bressane. O sentimento enamorado, o de se deixar levar pelo objeto desejado, a perda de referências de razão, é um dos movimentos que fundam a maneira com que o cinema de Bressane elabora e enuncia suas imagens. Está lá em Bethânea bem de perto na paixão da câmera pela jovem cantora recém chegada da Bahia, está lá no jogo obsessivo de Cara a Cara ,estaria depois na aproximações literárias com a escrita de Antônio Vieira ou Machado de Assis, e está aqui nesse Crazy Love. Mas esse amor, aqui, sintetizado no clichê maior do sentimento não correspondido, dobra-se sobre sua própria imagem e passa então a ser então um gesto tão sublime quanto carnal de entrega ao fazer cinematográfico. A imagem em movimento, os enquadramentos, o fluir da câmera na mão, são costurados entre véus, fragmentos como em um copião, de um filme que se impregna de narrativa clássica sem deixar de lado um movimento primário do olhar. Essa inocência do cinema que ultrapassa o território da intenção, que ultrapassa o território do sentido lógico atravessando suas premissas narrativas, encontra no olhar superexplorado de Guará sua imagem-síntese. Os olhos negros de Guará observando sua amada atravessam a razão do gesto e se figuram em encenações patéticas, recortes de mundo hiper-encenados, demarcados na imagem do homem que arranca o próprio olho em desespero amoroso. Crazy Love é esse cinema apaixonado pelo cinema, onde de viés de vê a loucura de um grupo de amigos exilados em Londres que se dedicam a atravessar a paisagem londrina com essa história de marginalidade anedótica e ao som dos Nervos de Aço. Nesse sentido, Crazy Love costura o tema da obsessão amorosa de Cara a Cara com os clichês da marginalidade e da amizade entre marginais, fincados em O Anjo Nasceu, transcrevendo-se num jogo de rupturas e desordenações que são a um só tempo um decalque psicológico da condição amorosa como um gesto estético radical de intervenção cinematográfica. O formato do olho recortado diante da lente nos remete a um experimentalismo na base da composição cinematográfica, respirada das vanguardas européias da primeira metade do século e reinventadas nessa paixão cinematográfica. Uma paixão que passa através do acúmulo (e aí Memórias de um estrangulador de loiras sobrevoa o filme) à medida que as súplicas do amante se reiteram, se repetem, se intensificam. Nesse movimento, o filme constrói um adensamento de sentido que se descola da narrativa e busca a imagem isolada desse sentimento, chegando a jogar com a imagem do marinheiro Popeye e sua Olívia Palito (captados diretamente da TV) como forma de evocação a um só tempo irônica e sublime: os olhos arregalados do marujo, a flor, a fumaça saindo pelas ventas – essas representações gráficas do sentimento reiteram em Bressane a idéia de um cinema que seja antes de tudo um gesto de construção e desestruturação de clichês, de um cinema enamorado pela sínteses e pela possibilidade de desestruturá-las em novos sentidos. Crazy Love é um filme de amor desesperado pelo gesto da imagem, pelo gesto de se criar imagens. Resistência e experimentação num mesmo movimento, num malicioso jogo de ícones (flores, armas, gestos de súplica e desespero) que inscrevem o filme numa chave de evocação de imagens eternas (descoladas da linha direta da história) que vão desde o Bressane de O Rei do Baralho (o primeiro filme de retorno ao Brasil onde Grande Othelo é destrinchado pelo olhar do cineasta) até o recente Filme de Amor e suas peripécias reclusas num quartinho de pensão. Essa ironia, esse amor do sentimento rasgado, escancarado(diante das boas maneiras do cinema de psicologismos bem-comportados ou reducionistas, ou de um cinema romântico baseado na exploração neurótica dos sentimentos), faz do filme de Julio Bressane um raro exemplar de sentimento trágico, de lúdica e rara alegria existencial diante do clichê do amor não-correspondido, como um certo samba das décadas de 30 e 40 (época cara aos ouvidos de Bressane) soube cultivar como nunca antes ou depois. Felipe Bragança |
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