DESEJO E REPARAÇÃO
Joe Wright, Atonement, Reino Unido, 2007




Briony menina e Briony Tallis, a escritora formada. Quem nos guia pelo filme é o olhar dela a observar.

A primeira imagem de Desejo e Reparação é a de uma casa em miniatura. É um plano ortogonal, a mostrar a mansão de frente, como que em um corte em duas dimensões. De imediato, um movimento vertical de câmera desmonta qualquer possível jogo de falseamento e apresenta uma seqüência de outras miniaturas, de animais, formando uma fila até uma mesa, na qual repousa uma menina, a escrever em uma máquina.

Algumas seqüências depois, veremos plano semelhante, igualmente frontal, ortogonal, da mesma morada, mas desta vez da verdadeira, filmada de longe, definindo uma imagem quase especular à primeira do filme. Outro movimento de câmera deslocará o olhar da morada para o gramado em frente onde, em vez de apequenados animais, repousam uma menina (a mesma da cena anterior) e uma jovem. Elas são mostradas de longe, do alto, como que a lhes forçar a miniaturização, como que a compará-las à fauna de brinquedo antes exibida.

Ali, Briony (Saoirse Ronan), a menina, pergunta a Cecilia (Keira Knightley): O que você faria se fosse outra pessoa? Pergunta aparentemente simples de uma mente juvenil que acaba de escrever uma peça e está curiosa com as múltiplas possibilidades de se ser outro. Mas, veremos, é muito mais que isso.


A casa, exibida “como miniatura”, código da operação de falseamento e do poder do narrador.

Desejo e Reparação é todo construído assim, com pequenos signos de seu projeto: trata-se da história de um falseamento, narrada com falseamento. A primeira seqüência já inscreve um estatuto: todos os personagens operarão como que miniaturas em uma simulação. Não à toa, saberemos logo depois de ver os animaizinhos que a menina escrevia uma peça, que ela criava uma trama, um texto no qual controlava ações de personagens. Briony será a protagonista de uma história falsa, criada por ela, motivada por uma série de fatores (série que determinará a complexidade de sua personagem e do próprio filme). Mas o primeiro traço a fazer de Desejo e Reparação uma obra tão peculiar é o fato de que essa mesma narradora compõe uma trama dentro da qual ela mesma estará inserida. Ela não deixará de ser mais um na seqüência de bichos de seu próprio jogo de miniaturas.

O que há de mais marcante no filme de Joe Wright, entretanto, é a economia do olhar que opera essa metáfora. Sim, tudo que veremos na tela será motivado por algo que Briony pensou ter visto e por uma série de interpretações. Mas, mais que apenas seguir esse modelo de “tragédia de erros”, Desejo e Reparação é um sistema de si mesmo, uma lógica própria de produção de um estatuto flutuante de verdades movida por um conjunto de, digamos, “fenômenos ópticos”. A começar por uma consciência importante e muito clara nas ações do diretor – poderosamente municiado pelo roteiro de Christopher Hampton, que habitualmente apresenta precisão milimétrica no que diz respeito a oferecer possibilidades aos diretores, e que aqui fez um trabalho bastante especular ao romance de Ian McEwan que lhe serve de fonte, pelo menos no que diz respeito aos diálogos e a boa parte das situações.

Wright joga com a noção tradicional de câmera onipresente, aquela que produz a ilusão de que, diante da lente está constituída “a” verdade. É algo em que qualquer espectador já está treinado. E algo com que alguns cineastas têm jogado para produzir efeitos de falseamento. É o que está sempre presente no cinema de M. Night Shyamalan – pensemos no homem morto de Sexto Sentido, que só não é sabido morto porque é visível sem que nos demos conta de que isso se dá porque quem o vê, além de nós, é um menino que vê mortos –, ou em Spider, de David Cronenberg – onde acompanhamos um narrador esquizofrênico que serve de testemunha ocular de uma história na qual tolamente acreditamos, apesar de sua clara falta de credibilidade como narrador.

Em Desejo e Reparação, Wright monta um conjunto de armadilhas visuais bastante arguto. A começar por seu jogo de apresentação/revelação passo-a-passo – algo emprestado de McEwan, mas multiplamente potencializado, claro, pela montagem e pela maneira como Wright filma. Ele introduz um jogo de ilusões a partir da apresentação de que sua personagem-guia é uma observadora e narradora. Briony é a menina meticulosa que escreve e quer ser escritora. Ela é também alguém que vê, testemunha – não à toa, somos o tempo todo confrontados com os olhos dela, em seus três tempos, menina, jovem e idosa. E desde a primeira observação dela a que temos acesso, ela sempre é vista e revista. Wright nos oferece sempre um segundo ponto de vista, o da observação e o da, chamemos assim, ação. Há sempre algo testemunhado por Briony e algo testemunhado por nós mesmos – e que seria para nós “a verdade”, treinados que estamos para a câmera onipresente.

Igualmente, somos conduzidos pelo filme por um olhar que podemos chamar de performático, que vai soando intrigante seqüência a seqüência. A luz de Wright é um tanto irreal, com contornos alvos e fortes, demarcando quase-auras nas pessoas e objetos. Da mesma forma, o foco, sobretudo o da primeira parte – até a prisão de Robbie (James McAvoy) – é também criador de uma visualidade pouco realista: a profundidade de campo muito baixa cria espaços de ocultamento e centra o olhar em pequenas áreas do plano. Soma-se a isso toda uma série de intervenções de produção – como as cartelas de data mimetizando a datilografia, mas que rompem com essa mesma emulação ao escrever a data completa de uma vez só; ou como a trilha sonora invadida pelo som ritmado da máquina de escrever.




A luz (no alto) e o foco ampliam a sensação de performatismo indicadora da intervenção do narrador.

Essa “literatização” da apresentação do mundo desloca desde o começo a narrativa para um plano mais analítico do que propriamente dramático: desde o primeiro plano, Desejo e Reparação é um filme sobre o narrar, sobre técnicas de narrativa, sobre uma história que se torna trágica porque uma menina inventiva resolveu que contar uma boa versão dos fatos é mais importante do que tudo, do que as pessoas. E esse objetivoé incorporado pela própria estética do filme, impressão que se amplia na segunda parte, graças à elevação do tom desse deslocamento. O que antes era uma operação próxima à mecânica do suspense – basta lembrar dos pianos obsessivos da música, que lembram a onipresença do efeito de um Philip Glass, aliás – se transforma nessa outra metade em uma potencialização de recursos de outro gênero, desta vez o melodrama. A música, antes tensa, torna-se mais lírica, a distância focal se amplia, os planos passam a ser mais amplos e intensos, mais duradouros mesmo. E o limite disso, claro, é o uso do plano-seqüência. O trecho todo de Dunquerque, aliás, é o supremo exercício desse deslocamento. Mas o momento em que a câmera acompanha Robbie e seus companheiros sem cortes é o mais forte elemento do pacto de “literatização”: ali vemos mesmo, mais do que um olhar, uma síntese. Vemos os soldados feridos à beira do oceano; os soldados famintos a executar cavalos; os soldados desesperados a brigar; um militar a anunciar que voltará para casa, atado ao topo do mastro de um barco abandonado; um outro que se exibe em um cavalo de ginástica; um grupo que canta um hino religioso em um coreto destruído; um outro grupo destrói automóveis, inutilizando seus radiadores; ao longe, vê-se uma roda gigante em ruínas, enquanto em uma pequena colina adultos em trajes de combate brincam em uma espécie de carrossel. Há um forte quê de literatura ali, parece que tudo terá que ser um símbolo, terá que algo dizer, como em livros geralmente tudo quer dizer algo.

Mas eis aqui o segundo elemento do porquê de o filme ser tão memorável: o responsável por tudo isso não é Wright. É o que descobriremos – e é esse descobrir o único senão da produção, que acaba por forçá-la rumo ao gênero dos “filmes de virada de roteiro”. Mas, ora, todo o cinema de Shyamalan é assim e não se trata de um problema a priori. O responsável por tudo isso é Briony, mais que isso, é Briony Tallis (Vanessa Redgrave), a escritora. É porque optou por escrever um romance adocicado, para dar a suas vítimas seu “último ato de bondade”, dar a eles “a felicidade”, que sua estética narrativa é épica, mítica, heróica, melodramática.




O plano mais aberto do plano-seqüência e um de seus detalhes, operação limite do performatismo visual de... Briony Tallis (?)

Wright, e aqui sim fechamos a mecânica da importância de Desejo e Reparação, é responsável por outra operação, a de... se rebelar contra Briony.

Ele vai soltando pistas ao longo do caminho. Assim, a única seqüência que assumirá uma estética realista, com uma decupagem econômica – embora expressiva – será a da entrevista e a dos momentos que a cercam. Ou seja, nos momentos da confissão de Briony (a um entrevistador, curiosa ironia, vivido por Anthony Minghella, uma escolha no mínimo curiosa para se fazer um jogo de metalinguagem). E mesmo essa seqüência será ainda envolta em mistério. Afinal, aquilo que a escritora conta é que... está morrendo e... perdendo a memória, “o que é o fim para uma escritora”. Ora, mas é justamente da memória dela que se trata ali. Naquele momento, descobrimos que toda a narração a que acabamos de presenciar não foi produto da câmera onipresente, mas, antes disso, de uma operação de construção visual emuladora de sua narração, narração essa moldada por sua memória.

Para tanto, como disse acima, Wright e Hampton plantam pistas. Por exemplo, o jogo de repetições da frase “I love you. Come back to me”. Ela é dita três vezes, em três momentos: 1) na cena do reencontro dos dois no café; 2) na cena do reencontro de ambos com Briony, quando ele tem um surto e a fala é usada como uma espécie de chave para “trazê-lo de volta” à realidade; e 3) na cena em que é revista a prisão de Robbie e divisamos o que Cecilia lhe disse ao ouvido. A repetição mesma é um jogo de denúncia de Wright, uma forma de não permitir que o totalitarismo da estrutura de Briony Tallis seja todo-poderoso.

E, ora, depois de vista a primeira aparição da escritora, todo o filme passa ser ressignificado e todo o cardápio estético apresentado pelo diretor assume outra dimensão. Tudo, na verdade, eram pistas. Briony era a menina que andava sem diagonais, dobrando cada corredor em viradas de 90º, como se fosse um soldado. Igualmente, ela, jovem (Romola Garai), enfermeira, anda no hospital, dobrando esquinas perfeitas. Sua pergunta no começo, o que a irmã faria se fosse outra pessoa, não é senão uma pergunta a si mesma. E, no fundo, a Wright.

Que responde multiplicando as possibilidades das personas que, afinal, são suas “miniaturas”. E um dos elementos disso é a forma como ele inocula tensão sexual ao longo da trama. O antagonista do casal não é nem a luta de classes nem tampouco a moral tradicional. No fundo, esses elementos – que são até usados por Briony na boca de Robbie – são apenas desculpas. O antagonista de fato do casal são a vaidade e a covardia da autora. Daí o grande embate de Desejo e Reparação ser entre Briony Tallis e... Joe Wright. A tensão sexual que atravessa a história é central nessa disputa. Vemo-la em todos os lugares na primeira parte da trama. Cecilia e Robbie estão alucinados de desejo um pelo outro e os não ditos explodem como tensão entre os dois, tanto que a presença dele é um incômodo para ela. Briony vê sua irmã se mostrar praticamente desnuda, mais que isso, em trajes molhados, ao rapaz, mas “acredita”/quer acreditar/finge acreditar que isso é produto de algum poder dele sobre ela. Robbie escreve uma carta que contém uma palavra “forte” e a envia “sem querer” (com todas as aspas que uma sessão de psicanálise imporiam ao moço). Briony vê a carta e compõe um personagem para Robbie graças a ela. Briony vê um estupro e dá o rosto “que quer” ao criminoso. Briony se encontra com Robbie quando caminha para mostrar a peça à mãe e diz que faz questão de sua presença e igualmente se joga no lago para ser por ele salva, as duas cenas sugerindo uma paixão dela por ele, depois negada por ela própria. Todos os encontros de Lola e Paul Marshal são pejados de um erotismo verbal fortíssimo – “Você tem que morder”, “Bonitos sapatos”, etc.

Na segunda metade, essa tensão sexual se converte em tensão emocional. Ulisses (cuja ausência é uma tortura), ou melhor, Robbie, tenta voltar para casa. Penélope, ou melhor, Cecilia, segue com seu tricô de paciência. E perdura o pedido dela: “Come back to me” e a promessa dele: “Retornarei, casarei com você e viverei sem a vergonha”.

Mas o que continua é a mecânica de disputa de quem é o dono da verdade.




A tensão sexual da primeira parte (alto) se converte em tensão emocional; a presença “incômoda” de Robbie se converte em ausência terrível.

E, para vencê-la, Wright faz seu investimento na conversão em personagem daquela que evitaria ao limite sê-lo. Justamente Briony. É dela que o filme trata, afinal, e não de Cecilia e Robbie. Mas para o certo, linhas tortas. Para vencê-la, ele se junta a ela. Como? Fazendo seus, os mecanismos dela. A grande operação do cineasta aqui é fazer com que a história que se passa diante de nossos olhos passe a ser entendida como uma história passada com ela e não com eles dois. É para entendermos Briony que vemos aquilo acontecer, é para saber o que se dá com ela que vemos o que se dá com eles. Desejo e Reparação não é a história de um casal separado pela impertinência juvenil de uma aspirante a escritora e sua vaidade. É a história de uma mulher que mentiu a vida toda para todos e que, último fôlego, tenta ainda mentir mais uma vez... com a encenação de uma verdade. “Para que serve tudo isso? Para que serve a honestidade?”, ela pergunta. Nessa cena, a volta de ressignificação que o roteiro e a montagem dão em torno de sim mesmos é poderosíssima: apenas no cinema tal manipulação do tempo pode funcionar tão fortemente: ali, Briony Tallis é ao mesmo tempo Briony, enfermeira Tallis e a escritora. Igualmente, todas as possibilidades ali se tornam possíveis, todas as ficções são verdades ao mesmo tempo, embaralhadas que estão entre memória falha, desejo de reparação, clichês narrativos e onipresença do narrador.


Briony Tallis em seu momento de revelação, decupagem realista ajuda a sublimar a verdade.

O resultado é a sublimação do olhar. Nada é certo ali. Tudo é vago e está ainda a ser escrito.

Alexandre Werneck