Briony menina e Briony
Tallis, a escritora formada. Quem nos guia pelo filme é o
olhar dela a observar.
A primeira imagem de Desejo e Reparação é a de uma casa em miniatura. É um
plano ortogonal, a mostrar a mansão de frente, como que em um corte em duas dimensões.
De imediato, um movimento vertical de câmera desmonta qualquer possível jogo
de falseamento e apresenta uma seqüência de outras miniaturas, de animais, formando
uma fila até uma mesa, na qual repousa uma menina, a escrever em uma máquina.
Algumas seqüências depois, veremos plano semelhante, igualmente frontal, ortogonal,
da mesma morada, mas desta vez da verdadeira, filmada de longe, definindo uma
imagem quase especular à primeira do filme. Outro movimento de câmera deslocará o
olhar da morada para o gramado em frente onde, em vez de apequenados animais,
repousam uma menina (a mesma da cena anterior) e uma jovem. Elas são mostradas
de longe, do alto, como que a lhes forçar a miniaturização, como que a compará-las à fauna
de brinquedo antes exibida.
Ali, Briony (Saoirse Ronan), a menina, pergunta a Cecilia (Keira Knightley):
O que você faria se fosse outra pessoa? Pergunta aparentemente simples de uma
mente juvenil que acaba de escrever uma peça e está curiosa com as múltiplas
possibilidades de se ser outro. Mas, veremos, é muito mais que isso.
A casa, exibida “como miniatura”, código da operação
de falseamento e do poder do narrador.
Desejo e Reparação é todo construído assim, com pequenos signos de
seu projeto: trata-se da história de um falseamento, narrada com falseamento.
A primeira seqüência já inscreve um estatuto: todos os personagens operarão
como que miniaturas em uma simulação. Não à toa, saberemos logo depois de
ver os animaizinhos que a menina escrevia uma peça, que ela criava uma trama,
um texto no qual controlava ações de personagens. Briony será a protagonista
de uma história falsa, criada por ela, motivada por uma série de fatores
(série que determinará a complexidade de sua personagem e do próprio filme).
Mas o primeiro traço a fazer de Desejo e Reparação uma obra tão peculiar é o
fato de que essa mesma narradora compõe uma trama dentro da qual ela mesma
estará inserida. Ela não deixará de ser mais um na seqüência de bichos de
seu próprio jogo de miniaturas.
O que há de mais marcante no filme de Joe Wright, entretanto, é a economia do
olhar que opera essa metáfora. Sim, tudo que veremos na tela será motivado por
algo que Briony pensou ter visto e por uma série de interpretações. Mas, mais
que apenas seguir esse modelo de “tragédia de erros”, Desejo e Reparação é um
sistema de si mesmo, uma lógica própria de produção de um estatuto flutuante
de verdades movida por um conjunto de, digamos, “fenômenos ópticos”. A começar
por uma consciência importante e muito clara nas ações do diretor – poderosamente
municiado pelo roteiro de Christopher Hampton, que habitualmente apresenta precisão
milimétrica no que diz respeito a oferecer possibilidades aos diretores, e que
aqui fez um trabalho bastante especular ao romance de Ian McEwan que lhe serve
de fonte, pelo menos no que diz respeito aos diálogos e a boa parte das situações.
Wright joga com a noção tradicional de câmera onipresente, aquela que produz
a ilusão de que, diante da lente está constituída “a” verdade. É algo em que
qualquer espectador já está treinado. E algo com que alguns cineastas têm jogado
para produzir efeitos de falseamento. É o que está sempre presente no cinema
de M. Night Shyamalan – pensemos no homem morto de Sexto Sentido, que
só não é sabido morto porque é visível sem que nos demos conta de que isso se
dá porque quem o vê, além de nós, é um menino que vê mortos –, ou em Spider,
de David Cronenberg – onde acompanhamos um narrador esquizofrênico que serve
de testemunha ocular de uma história na qual tolamente acreditamos, apesar de
sua clara falta de credibilidade como narrador.
Em Desejo e Reparação, Wright monta um conjunto de armadilhas visuais
bastante arguto. A começar por seu jogo de apresentação/revelação passo-a-passo – algo
emprestado de McEwan, mas multiplamente potencializado, claro, pela montagem
e pela maneira como Wright filma. Ele introduz um jogo de ilusões a partir da
apresentação de que sua personagem-guia é uma observadora e narradora. Briony é a
menina meticulosa que escreve e quer ser escritora. Ela é também alguém que vê,
testemunha – não à toa, somos o tempo todo confrontados com os olhos dela, em
seus três tempos, menina, jovem e idosa. E desde a primeira observação dela a
que temos acesso, ela sempre é vista e revista. Wright nos oferece sempre um
segundo ponto de vista, o da observação e o da, chamemos assim, ação. Há sempre
algo testemunhado por Briony e algo testemunhado por nós mesmos – e que seria
para nós “a verdade”, treinados que estamos para a câmera onipresente.
Igualmente, somos conduzidos pelo filme por um olhar que podemos chamar de performático,
que vai soando intrigante seqüência a seqüência. A luz de Wright é um tanto irreal,
com contornos alvos e fortes, demarcando quase-auras nas pessoas e objetos. Da
mesma forma, o foco, sobretudo o da primeira parte – até a prisão de Robbie (James
McAvoy) – é também criador de uma visualidade pouco realista: a profundidade
de campo muito baixa cria espaços de ocultamento e centra o olhar em pequenas áreas
do plano. Soma-se a isso toda uma série de intervenções de produção – como as
cartelas de data mimetizando a datilografia, mas que rompem com essa mesma emulação
ao escrever a data completa de uma vez só; ou como a trilha sonora invadida pelo
som ritmado da máquina de escrever.
A luz (no alto) e o foco ampliam
a sensação de performatismo indicadora da intervenção do narrador.
Essa “literatização” da apresentação do mundo desloca desde o começo a narrativa
para um plano mais analítico do que propriamente dramático: desde o primeiro
plano, Desejo e Reparação é um filme sobre o narrar, sobre técnicas de
narrativa, sobre uma história que se torna trágica porque uma menina inventiva
resolveu que contar uma boa versão dos fatos é mais importante do que tudo, do
que as pessoas. E esse objetivoé incorporado pela própria estética do filme,
impressão que se amplia na segunda parte, graças à elevação do tom desse deslocamento.
O que antes era uma operação próxima à mecânica do suspense – basta lembrar dos
pianos obsessivos da música, que lembram a onipresença do efeito de um Philip
Glass, aliás – se transforma nessa outra metade em uma potencialização de recursos
de outro gênero, desta vez o melodrama. A música, antes tensa, torna-se mais
lírica, a distância focal se amplia, os planos passam a ser mais amplos e intensos,
mais duradouros mesmo. E o limite disso, claro, é o uso do plano-seqüência. O
trecho todo de Dunquerque, aliás, é o supremo exercício desse deslocamento. Mas
o momento em que a câmera acompanha Robbie e seus companheiros sem cortes é o
mais forte elemento do pacto de “literatização”: ali vemos mesmo, mais do que
um olhar, uma síntese. Vemos os soldados feridos à beira do oceano; os soldados
famintos a executar cavalos; os soldados desesperados a brigar; um militar a
anunciar que voltará para casa, atado ao topo do mastro de um barco abandonado;
um outro que se exibe em um cavalo de ginástica; um grupo que canta um hino religioso
em um coreto destruído; um outro grupo destrói automóveis, inutilizando seus
radiadores; ao longe, vê-se uma roda gigante em ruínas, enquanto em uma pequena
colina adultos em trajes de combate brincam em uma espécie de carrossel. Há um
forte quê de literatura ali, parece que tudo terá que ser um símbolo, terá que
algo dizer, como em livros geralmente tudo quer dizer algo.
Mas eis aqui o segundo elemento do porquê de o filme ser tão memorável: o responsável
por tudo isso não é Wright. É o que descobriremos – e é esse descobrir o único
senão da produção, que acaba por forçá-la rumo ao gênero dos “filmes de virada
de roteiro”. Mas, ora, todo o cinema de Shyamalan é assim e não se trata de um
problema a priori. O responsável por tudo isso é Briony, mais que isso, é Briony
Tallis (Vanessa Redgrave), a escritora. É porque optou por escrever um romance
adocicado, para dar a suas vítimas seu “último ato de bondade”, dar a eles “a
felicidade”, que sua estética narrativa é épica, mítica, heróica, melodramática.
O plano mais aberto do plano-seqüência
e um de seus detalhes, operação limite do performatismo visual de... Briony Tallis
(?)
Wright, e aqui sim fechamos a mecânica da importância de Desejo e Reparação, é responsável
por outra operação, a de... se rebelar contra Briony.
Ele vai soltando pistas ao longo do caminho. Assim, a única seqüência que assumirá uma
estética realista, com uma decupagem econômica – embora expressiva – será a da
entrevista e a dos momentos que a cercam. Ou seja, nos momentos da confissão
de Briony (a um entrevistador, curiosa ironia, vivido por Anthony Minghella,
uma escolha no mínimo curiosa para se fazer um jogo de metalinguagem). E mesmo
essa seqüência será ainda envolta em mistério. Afinal, aquilo que a escritora
conta é que... está morrendo e... perdendo a memória, “o que é o fim para uma
escritora”. Ora, mas é justamente da memória dela que se trata ali. Naquele momento,
descobrimos que toda a narração a que acabamos de presenciar não foi produto
da câmera onipresente, mas, antes disso, de uma operação de construção visual
emuladora de sua narração, narração essa moldada por sua memória.
Para tanto, como disse acima, Wright e Hampton plantam pistas. Por exemplo, o
jogo de repetições da frase “I love you. Come back to me”. Ela é dita três vezes,
em três momentos: 1) na cena do reencontro dos dois no café; 2) na cena do reencontro
de ambos com Briony, quando ele tem um surto e a fala é usada como uma espécie
de chave para “trazê-lo de volta” à realidade; e 3) na cena em que é revista
a prisão de Robbie e divisamos o que Cecilia lhe disse ao ouvido. A repetição
mesma é um jogo de denúncia de Wright, uma forma de não permitir que o totalitarismo
da estrutura de Briony Tallis seja todo-poderoso.
E, ora, depois de vista a primeira aparição da escritora, todo o filme passa
ser ressignificado e todo o cardápio estético apresentado pelo diretor assume
outra dimensão. Tudo, na verdade, eram pistas. Briony era a menina que andava
sem diagonais, dobrando cada corredor em viradas de 90º, como se fosse um soldado.
Igualmente, ela, jovem (Romola Garai), enfermeira, anda no hospital, dobrando
esquinas perfeitas. Sua pergunta no começo, o que a irmã faria se fosse outra
pessoa, não é senão uma pergunta a si mesma. E, no fundo, a Wright.
Que responde multiplicando as possibilidades das personas que, afinal, são suas “miniaturas”.
E um dos elementos disso é a forma como ele inocula tensão sexual ao longo da
trama. O antagonista do casal não é nem a luta de classes nem tampouco a moral
tradicional. No fundo, esses elementos – que são até usados por Briony na boca
de Robbie – são apenas desculpas. O antagonista de fato do casal são a vaidade
e a covardia da autora. Daí o grande embate de Desejo e Reparação ser
entre Briony Tallis e... Joe Wright. A tensão sexual que atravessa a história é central
nessa disputa. Vemo-la em todos os lugares na primeira parte da trama. Cecilia
e Robbie estão alucinados de desejo um pelo outro e os não ditos explodem como
tensão entre os dois, tanto que a presença dele é um incômodo para ela. Briony
vê sua irmã se mostrar praticamente desnuda, mais que isso, em trajes molhados,
ao rapaz, mas “acredita”/quer acreditar/finge acreditar que isso é produto de
algum poder dele sobre ela. Robbie escreve uma carta que contém uma palavra “forte” e
a envia “sem querer” (com todas as aspas que uma sessão de psicanálise imporiam
ao moço). Briony vê a carta e compõe um personagem para Robbie graças a ela.
Briony vê um estupro e dá o rosto “que quer” ao criminoso. Briony se encontra
com Robbie quando caminha para mostrar a peça à mãe e diz que faz questão de
sua presença e igualmente se joga no lago para ser por ele salva, as duas cenas
sugerindo uma paixão dela por ele, depois negada por ela própria. Todos os encontros
de Lola e Paul Marshal são pejados de um erotismo verbal fortíssimo – “Você tem
que morder”, “Bonitos sapatos”, etc.
Na segunda metade, essa tensão sexual se converte em tensão emocional. Ulisses
(cuja ausência é uma tortura), ou melhor, Robbie, tenta voltar para casa. Penélope,
ou melhor, Cecilia, segue com seu tricô de paciência. E perdura o pedido dela: “Come
back to me” e a promessa dele: “Retornarei, casarei com você e viverei sem a
vergonha”.
Mas o que continua é a mecânica de disputa de quem é o dono da verdade.
A tensão sexual da primeira parte (alto)
se converte em tensão emocional; a presença “incômoda” de Robbie se converte
em ausência terrível.
E, para vencê-la, Wright faz seu investimento na conversão em personagem daquela
que evitaria ao limite sê-lo. Justamente Briony. É dela que o filme trata, afinal,
e não de Cecilia e Robbie. Mas para o certo, linhas tortas. Para vencê-la, ele
se junta a ela. Como? Fazendo seus, os mecanismos dela. A grande operação do
cineasta aqui é fazer com que a história que se passa diante de nossos olhos
passe a ser entendida como uma história passada com ela e não com eles dois. É para
entendermos Briony que vemos aquilo acontecer, é para saber o que se dá com ela
que vemos o que se dá com eles. Desejo e Reparação não é a história de
um casal separado pela impertinência juvenil de uma aspirante a escritora e sua
vaidade. É a história de uma mulher que mentiu a vida toda para todos e que, último
fôlego, tenta ainda mentir mais uma vez... com a encenação de uma verdade. “Para
que serve tudo isso? Para que serve a honestidade?”, ela pergunta. Nessa cena,
a volta de ressignificação que o roteiro e a montagem dão em torno de sim mesmos é poderosíssima:
apenas no cinema tal manipulação do tempo pode funcionar tão fortemente: ali,
Briony Tallis é ao mesmo tempo Briony, enfermeira Tallis e a escritora. Igualmente,
todas as possibilidades ali se tornam possíveis, todas as ficções são verdades
ao mesmo tempo, embaralhadas que estão entre memória falha, desejo de reparação,
clichês narrativos e onipresença do narrador.
Briony Tallis em seu momento de revelação,
decupagem
realista ajuda a sublimar a verdade.
O resultado é a sublimação do olhar. Nada é certo ali. Tudo é vago e está ainda
a ser escrito.
Alexandre Werneck
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