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Imagens trilhadas em terrenos mercadológicos
Todo ano tem sua história, suas particularidades. E,
ao longo do tempo, um mesmo ano continua mudando: 2004 daqui
a cinco ou dez anos terá características bastante
diferentes, reconfigurado a partir de dados novos dos anos
vindouros ou de dados desconsiderados ou pouco considerados
que no entanto se revelarão como decisivos. Páginas
do jogo da História: no conflito das opiniões
acaloradas que fazem o cotidiano de nossos gostos, certas
interpretações ficam e certas desaparecem.
A imagem não sofreu um baque definitivo em 2004. O
cinema dá provas continuamente de que continua vivo
e esperneando sua liberdade, pronto para questionar o mundo,
a sociedade, a política, mas também pronto para
nos deslumbrar com a beleza e a justeza de suas proposições.
E, se o ano não colocou o estatuto da imagem numa sinuca
de bico, pode-se dizer que ao menos ela passou por alguns
desafios bastante interessantes ao longo dos últimos
doze meses: filmando o íntimo ocioso de duas pessoas
num hotel de Tóquio, perseguindo adolescentes pelos
corredores de um colégio em que um desastre está
prestes a acontecer, seguindo uma andarilha cega que ultrapassa
barreiras de medo para ganhar novamente a vida de seu amado,
acompanhando a vida de um futuro presidente ou escalonando
o imaginário de onde ele brotou, dramatizando um amor
na floresta entre camponês e soldado, perguntando-se
sobre nossos encarcerados ou testemunhando a vingança
de uma noiva em busca de sua filha. Entre estes filmes, muito
poucas coisas em comum, mas algo fundamental: são obras
que propõem à imagem algo que ainda não
está dado de antemão, algo que não obedece
a nenhum protocolo ou estatuto definido, mas se encontram
num limiar de indeterminação que joga o cinema
novamente em terreno selvagem. Para trilhar essa selva, às
vezes é necessário uma imagem, e não
mais que isso: a idéia de que uma imagem é capaz
de abrir alguma luz no terreno um tanto pantanoso da visualidade
contemporânea, em que o antigo pioneiro disputa com
um outro mundo de imagens, todas com um preço escrito
abaixo (publicidade, televisão, internet).
Uma tarefa um tanto ingrata, porque o cinema é uma
arte e também uma indústria, como bem lembrou
Malraux. Mas pertence à arte e à ela unicamente
a possibilidade de jogar com o inefável, de penetrar
o desconhecido e trazer uma obra como prova de sua viagem.
São esses souvenirs que nos fazem questionar
essa relação entre imagens, e como uma leva
a outra. Como uma imagem da vida, como imagens de outro filme,
como imagens de outros filmes do próprio diretor podem
estruturar outras obras e abrir clareiras que ainda permitam
à arte sobreviver e não se limitar ao papel
de mercadoria.
Complementam nossa última edição do ano
a cobertura de três mostras bastante diversas, mas que
mostram a vitalidade que o cinema ainda pode ter: uma do ponto
de vista da curadoria (agregar os filmes populares desprezados
do cinema brasileiro e exibi-los na cinemateca), uma do ponto
de vista da própria imperfeição (a safra
dos curtas-metragens desse ano) e outra pelos próprios
filmes, um alto momento da histrória do cinema (Satyajit
Ray). Prova de que há muitas maneiras de reavivar o
cinema, de fazer dele novamente um objeto de prazer e conhecimento
ali onde pouco se imaginava que poderia surgir alguma coisa.
2004 no futuro podem ser muitas outras coisas, mas no momento
é o que nós vivemos. Ou o que acabamos de viver.
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