Peões de Eduardo Coutinho
A equipe de redação da Contracampo oferece para o segundo semestre cursos sobre história do cinema mundial, história do cinema brasileiro e oficinas de crítica.
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Imagens trilhadas em terrenos mercadológicos

Todo ano tem sua história, suas particularidades. E, ao longo do tempo, um mesmo ano continua mudando: 2004 daqui a cinco ou dez anos terá características bastante diferentes, reconfigurado a partir de dados novos dos anos vindouros ou de dados desconsiderados ou pouco considerados que no entanto se revelarão como decisivos. Páginas do jogo da História: no conflito das opiniões acaloradas que fazem o cotidiano de nossos gostos, certas interpretações ficam e certas desaparecem.

A imagem não sofreu um baque definitivo em 2004. O cinema dá provas continuamente de que continua vivo e esperneando sua liberdade, pronto para questionar o mundo, a sociedade, a política, mas também pronto para nos deslumbrar com a beleza e a justeza de suas proposições. E, se o ano não colocou o estatuto da imagem numa sinuca de bico, pode-se dizer que ao menos ela passou por alguns desafios bastante interessantes ao longo dos últimos doze meses: filmando o íntimo ocioso de duas pessoas num hotel de Tóquio, perseguindo adolescentes pelos corredores de um colégio em que um desastre está prestes a acontecer, seguindo uma andarilha cega que ultrapassa barreiras de medo para ganhar novamente a vida de seu amado, acompanhando a vida de um futuro presidente ou escalonando o imaginário de onde ele brotou, dramatizando um amor na floresta entre camponês e soldado, perguntando-se sobre nossos encarcerados ou testemunhando a vingança de uma noiva em busca de sua filha. Entre estes filmes, muito poucas coisas em comum, mas algo fundamental: são obras que propõem à imagem algo que ainda não está dado de antemão, algo que não obedece a nenhum protocolo ou estatuto definido, mas se encontram num limiar de indeterminação que joga o cinema novamente em terreno selvagem. Para trilhar essa selva, às vezes é necessário uma imagem, e não mais que isso: a idéia de que uma imagem é capaz de abrir alguma luz no terreno um tanto pantanoso da visualidade contemporânea, em que o antigo pioneiro disputa com um outro mundo de imagens, todas com um preço escrito abaixo (publicidade, televisão, internet).

Uma tarefa um tanto ingrata, porque o cinema é uma arte e também uma indústria, como bem lembrou Malraux. Mas pertence à arte e à ela unicamente a possibilidade de jogar com o inefável, de penetrar o desconhecido e trazer uma obra como prova de sua viagem. São esses souvenirs que nos fazem questionar essa relação entre imagens, e como uma leva a outra. Como uma imagem da vida, como imagens de outro filme, como imagens de outros filmes do próprio diretor podem estruturar outras obras e abrir clareiras que ainda permitam à arte sobreviver e não se limitar ao papel de mercadoria.

Complementam nossa última edição do ano a cobertura de três mostras bastante diversas, mas que mostram a vitalidade que o cinema ainda pode ter: uma do ponto de vista da curadoria (agregar os filmes populares desprezados do cinema brasileiro e exibi-los na cinemateca), uma do ponto de vista da própria imperfeição (a safra dos curtas-metragens desse ano) e outra pelos próprios filmes, um alto momento da histrória do cinema (Satyajit Ray). Prova de que há muitas maneiras de reavivar o cinema, de fazer dele novamente um objeto de prazer e conhecimento ali onde pouco se imaginava que poderia surgir alguma coisa. 2004 no futuro podem ser muitas outras coisas, mas no momento é o que nós vivemos. Ou o que acabamos de viver.

     
  Ruy Gardnier