O plano final de Vai-e-Vem, derradeiro filme de João César Monteiro
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Paul Verhoeven é o cineasta homenageado na seção DVD/VHS. Como filme a descobrir,
A Família
, de Sergio Sollima.
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Zeca Camargo fazendo turismo no "Fantástico", o premiado seriado Angels in America e os filmes da semana na tv a cabo s�o os destaques na se��o de Televis�o.
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Um olho. Dentro dele, o reflexo de uma praça, e especialmente de uma árvore no centro dessa praça. A mesma praça e a mesma árvore freqüentam o cinema de João César Monteiro desde a filmagem de seu primeiro curta-metragem, Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, e vão até as últimas imagens de seu derradeiro longa-metragem, o fenomenal Vai-e-Vem. Impregnado de um senso de humor incomum, que caminha de mãos dadas com um desejo selvagem de subversão, o conjunto dos filmes de João César Monteiro constitui um verdadeiro monumento à liberdade. Não a "liberdade pela liberdade" que se brada aos quatro ventos e que se defende de forma fácil e frouxa, mas uma insubmissão a qualquer imperativo de ordem moral, política ou social que venha se impor como padrão de comportamento a ser seguido. Uma tal insubmissão não poderia funcionar sem uma total auto-entrega que vai do ignóbil ao sublime. Ou melhor, que encara o ignóbil como sublime e vice-versa. Estranha lógica que associa calçados de morto ao amor impossível, a mãe ao cadáver violado, o pentelho ao sorvete. O reflexo do olho, por fim, não seria a última remissão dessa lógica da subversão pelos paroxismos? Nela, há o homem que vê (o subjetivo), mas há também, refletivo como tal, uma exterioridade não mediada (o objetivo), os dois criando um complexo (objetivo) que será captado por outro olho, dessa vez o do espectador (volta ao subjetivo).

João César Monteiro, cineasta português acometido pelo câncer no começo de 2003, teve uma das cinematografias mais decisivas do cinema contemporânea. Uma obra que só pôde ser vista completa, entretanto, na mostra dedicada a seus filmes, em dvd, realizada no Sesc Copacabana no mês de junho. Mais uma vez voltam o olho e a árvore: mesmo já morto, esse olho mantém sua longevidade ao ser exibido, e se aproxima da árvore, esse ser vivo que tantas vezes tem vida para além de duas ou três gerações humanas. Filmar esse olho refletindo uma árvore, pode por fim ser a última piada subversiva de João César Monteiro, em que afinal ele revela sua insubmissão até em relação à morte, fazendo persistir infinitamente (o plano não dura menos que quatro minutos) esse último apego à vida, doravante transformado em instante eterno, ainda que fugidio. A única questão que permanece ainda sem resposta é: quem tem coragem o suficiente para calçar os sapatos de Monteiro?

Completando a pauta mensal de nossa revista, publicamos uma cobertura panorâmica do Cinesul 2004, mostra que anualmente atualiza o público carioca com parte da produção latino-americana contemporânea e, em suas mostras paralelas, resgata momentos importantes do passado cinematográfico dessa grande região com tão poucos pontos de contato e comunicação entre si. Entre os destaques, uma retrospectiva dedicada ao realizador venezuelano Román Chalbaud, que aqui ganha uma entrevista e um artigo comentando sua obra cinematográfica (Chalbaud é também dramaturgo).

Por fim, nossa seção de DVD/VHS faz um primeiro esforço sistemático para jogar luz sobre a obra de um cineasta muito visto mas tantas vezes mal-compreendido: Paul Verhoeven. Autor de uma obra tão delirante quanto questionadora do bom gosto, Verhoeven faz o espectador engolir seu próprio sadismo voyeurista recheando seus filmes sempre com um tempero forte demais. Excetuada a polidez, uma obra que comunica em alguns pontos com os filmes do finado português na forma como ambos entram em pé de guerra com uma certa sensibilidade de classe-média que deseja sempre o quinhão certo, nem anoréxico nem adiposo demais. No cinema, no entanto, é melhor morrer de inanição ou de obesidade do que seguir a mesma dieta balanceada e soporífera que estamos acostumados a ver em tantos cinemas por aí.

(Esta edição de Contracampo só foi possível devido à inestimável ajuda de Júlio César de Miranda. Aqui vai nossa consideração e nosso agradecimento)

     
  Ruy Gardnier