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Um olho. Dentro dele, o reflexo de
uma praça, e especialmente de uma árvore no
centro dessa praça. A mesma praça e a mesma
árvore freqüentam o cinema de João César
Monteiro desde a filmagem de seu primeiro curta-metragem,
Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço,
e vão até as últimas imagens de seu derradeiro
longa-metragem, o fenomenal Vai-e-Vem. Impregnado de
um senso de humor incomum, que caminha de mãos dadas
com um desejo selvagem de subversão, o conjunto dos
filmes de João César Monteiro constitui um verdadeiro
monumento à liberdade. Não a "liberdade
pela liberdade" que se brada aos quatro ventos e que
se defende de forma fácil e frouxa, mas uma insubmissão
a qualquer imperativo de ordem moral, política ou social
que venha se impor como padrão de comportamento a ser
seguido. Uma tal insubmissão não poderia funcionar
sem uma total auto-entrega que vai do ignóbil ao sublime.
Ou melhor, que encara o ignóbil como sublime
e vice-versa. Estranha lógica que associa calçados
de morto ao amor impossível, a mãe ao cadáver
violado, o pentelho ao sorvete. O reflexo do olho, por fim,
não seria a última remissão dessa lógica
da subversão pelos paroxismos? Nela, há o homem
que vê (o subjetivo), mas há também, refletivo
como tal, uma exterioridade não mediada (o objetivo),
os dois criando um complexo (objetivo) que será captado
por outro olho, dessa vez o do espectador (volta ao subjetivo).
João César Monteiro, cineasta português
acometido pelo câncer no começo de 2003, teve
uma das cinematografias mais decisivas do cinema contemporânea.
Uma obra que só pôde ser vista completa, entretanto,
na mostra dedicada a seus filmes, em dvd, realizada no Sesc
Copacabana no mês de junho. Mais uma vez voltam o olho
e a árvore: mesmo já morto, esse olho mantém
sua longevidade ao ser exibido, e se aproxima da árvore,
esse ser vivo que tantas vezes tem vida para além de
duas ou três gerações humanas. Filmar
esse olho refletindo uma árvore, pode por fim ser a
última piada subversiva de João César
Monteiro, em que afinal ele revela sua insubmissão
até em relação à morte, fazendo
persistir infinitamente (o plano não dura menos que
quatro minutos) esse último apego à vida, doravante
transformado em instante eterno, ainda que fugidio. A única
questão que permanece ainda sem resposta é:
quem tem coragem o suficiente para calçar os sapatos
de Monteiro?
Completando a pauta mensal de nossa
revista, publicamos uma cobertura panorâmica do Cinesul
2004, mostra que anualmente atualiza o público carioca
com parte da produção latino-americana contemporânea
e, em suas mostras paralelas, resgata momentos importantes
do passado cinematográfico dessa grande região
com tão poucos pontos de contato e comunicação
entre si. Entre os destaques, uma retrospectiva dedicada ao
realizador venezuelano Román Chalbaud, que aqui ganha
uma entrevista e um artigo comentando sua obra cinematográfica
(Chalbaud é também dramaturgo).
Por fim, nossa seção
de DVD/VHS faz um primeiro esforço sistemático
para jogar luz sobre a obra de um cineasta muito visto mas
tantas vezes mal-compreendido: Paul Verhoeven. Autor de uma
obra tão delirante quanto questionadora do bom gosto,
Verhoeven faz o espectador engolir seu próprio sadismo
voyeurista recheando seus filmes sempre com um tempero forte
demais. Excetuada a polidez, uma obra que comunica em alguns
pontos com os filmes do finado português na forma como
ambos entram em pé de guerra com uma certa sensibilidade
de classe-média que deseja sempre o quinhão
certo, nem anoréxico nem adiposo demais. No cinema,
no entanto, é melhor morrer de inanição
ou de obesidade do que seguir a mesma dieta balanceada e soporífera
que estamos acostumados a ver em tantos cinemas por aí.
(Esta edição de Contracampo
só foi possível devido à inestimável
ajuda de Júlio César de Miranda. Aqui vai nossa
consideração e nosso agradecimento)
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