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Existe um eixo duplo da cinefilia que vive nos remetendo para lugares distintos e complementares. Por um lado, ele nos maravilha com o que o cinema produz hoje, nos engajando num tempo e espaço que habitamos e nos confrontando com a sensibilidade específica do moment em que vivemos; de outro, ele nos instala em outro tempo, agora imemorial mais do que passado, onde se misturam uma infinidade de nomes de filmes e diretores que nasceram e realizaram uma obra antes do começo de nossa paixão. Como atender a ambos?

Em Contracampo, sempre houve mais co-habitação do que tensão entre esses dois aspectos do mesmo eixo. Muitas vezes, uma descoberta acabava remetendo a uma escavação, e vice-versa. Que filmes feitos muitos anos atrás têm relação direta com alguns que são feitos hoje, isso nos parece mais uma evidência do que um credo. O cinema se nutre de muitas coisas, e o passado do cinema sempre foi um alimento dos mais importantes: de Tarantino (Leone) a Almodóvar (Sirk), de Kiarostami (Rossellini) a Tsai (Antonioni), nossos novos realizadores sempre encontram uma maneira de criar que encontra ressonâncias em grandes realizadores da história do cinema. Quais escolher, então, diante das enormes possibilidades com que nos defrontamos? Quais privilegiar, uma vez que nossas paixões são tantas?

Jean Rouch sempre foi uma quase obsessão neste grupo. A quase impossibilidade de ver seus filmes – o que o transformava a nossos olhos em um mito relativo – vinha sempre acompanhada de uma fascinação por sua trajetória dentro do cinema francês dos anos 50-60 e, especialmente, dentro do documentário, vindo quebrar a pompa dogmática de "realidade" que tanto faz mal a certos filmes... A triste nota de seu falecimento, num acidente de carro na África, acrescido a uma pequena retrospectiva de sua obra no festival É Tudo Verdade – na qual muitos de nós puderam travar um contato maior com seus filmes –, foi o gatilho para uma homenagem que, mais do que merecida, é ainda inédita na crítica brasileira.

Mas o outro lado do eixo também puxa: Rithy Panh, realizador cambojano, apareceu recentemente em festivais com duas pepitas muito distintas, diferentes em dimensão e proposta, mas igualmente instigantes: S21 (Festival do Rio) e As Pessoas de Angkor (É Tudo Verdade). Foco nesse diretor que se classifica mais como um agrimensor de memórias do que como um documentarista (mesmo porque sua obra envolve trabalhos de ficção), e que deve ser um dos nomes centrais do cinema nos próximos anos (se já não o é). Completa nosso tour pelo cenário "documental" uma reflexão sobre alguns aspectos da produção nacional, geralmente mais inflada do que inflamada (guardadas as exceções costumeiras, Sacramento e Coutinho). Esperamos que a leitura seja tão proveitosa e estimulante quanto a feitura. Desejamos boa viagem.

     
  Ruy Gardnier