"O meu anarquismo precisa de você, espectador"

Pensei duas vezes: utilizo ou não as aspas para a frase acima, que dariam crédito de autoria a Jairo Ferreira? O Jairo odiava as aspas e ter de mencionar o nome do dono da citação. Que o leitor entendesse que a tal fala, frase ou interjeição pertencia a fulano; mas é claro, se ele, Jairo Ferreira, estava justamente escrevendo sobre aquele cineasta! Esta situação aconteceu várias vezes e a primeira versão do "Cinema de Invenção" causou problemas para o Jairo – acho que em relação ao Sganzerla. Na segunda edição deste mesmo livro ele tentou se comportar.

Enfim, mas o Jairo não citava, porque, dizia ele, travava o texto, a inspiração. E ele detestava texto acadêmico.

Tenho na memória fragmentos do seu filme mais conhecido, o genial Vampiro da Cinemateca. Seqüências inteiras do Rei do Baralho de Bressane se alternam com momentos finais de Cidadão Kane, com outros trechos de filmes que não me lembro agora. As imagens de trechos de filmes são às vezes comentadas pela voz de Jairo, fora de rotação, e entremeadas por músicas brasileiras da década de 30/40 bem ao estilo de Bressane.

Só para diferenciar da literatura, o cinema é o lugar onde a apropriação do que é do outro pode se dar livremente. E no Vampiro há a homenagem explícita ao inventor da apropriação indébita: Oswald de Andrade, cuja a frase – "só me interessa o que não é meu" era dita por Jairo em Oficinas e palestras sobre Super 8. Cena antológica antecede a seqüência onde toda a obra de Oswald nos é mostrada livro a livro, título a título: Reichenbach segura um livro e uma arma apontada para o espectador, no livro se lê: "Terceiro Mundo", em sua frente o rosto de Lygia em close (mulher de Carlão), ela declama um poema, girando o rosto de um lado e de outro até termos o close da capa do livro que Carlão segura.

Jairo fazia um cinema artesanal, em que ele aparece não só como cineasta entrevistador mas também como personagem, em que dispõe de tipos engraçados que nem sempre consegui identificar quem ou o que eram.

Conheci Jairo na década de 90 quando organizei uma mostra com seus filmes no MIS. Saindo com amigos na noite paulistana Jairo aparecia sempre munido de um gravadorzinho para onde irradiava notícias sobre o cinema mundial/brasileiro. Cinema misturava-se com magia e o nome do grande bruxo Alesteir Crowley soava em meio a performances raulseixianas: "o amor é a lei, amor sob vontade". O gravador passava de mão em mão pelo pessoal da Paraísos Artificiais – Paolo Gregori, Paulo Sacramento, Marcelo Toledo, Christian Saghaard, Débora Waldman – e ele personagem-vampiro do cinema coletava e divulgava opiniões. Recusando o tom acadêmico, debochando ou encarnando fundo figuras do rock como Raul Seixas, suas opiniões desembocavam sempre em cinema e surpreendiam pela quantidade de informação e cultura, fazendo jus aos anos de trabalho como crítico (na década de 60 Shimbum, em 70/80 Folha de São Paulo e colaborador em outros jornais como Estado de São Paulo e Jornal da Tarde).

Homenageando cineastas brasileiros e em um extremo oposto se apropriando de frases destes sem autorização, Jairo se movimentou pela vida real intelectual e cinematográfica, de maneira completamente livre. Aspectos antropofágicos no sentido intelectual (tipo "me aproprio do que tiver vontade para compor o meu raciocínio, texto ou filme") e no sentido visceral (Jairo colocava seu próprio corpo em risco com situações-limite que criava em seu dia a dia) resumem seus registros de passagem pelo mundo.

Se exibindo como um faquir (magérrimo, aproveitado como personagem com estas características mesmo, no curta de Paolo Gregori e Marcelo Toledo A Bela e os Pássaros), Jairo andava e – nos últimos anos de sua vida – se arrastava sob os olhares perplexos, fascinados e muitas vezes, severos dos passantes e amigos.

Seu completo desprezo pelas leis, normas e regras sociais dos homens comuns, parecia ter se radicalizado nos últimos anos de sua vida. Sua rebeldia tão presente em seu papel de crítico e realizador cinematográfico, transbordava e voltava-se agora para ele próprio.

Jairo era assim agressivo mas nem sempre conseguia bancar tanta rebeldia.

Nos últimos anos andava munido de uma bengala que podia servir para se fazer de muito velhinho, podendo passar pela categoria da terceira idade, necessária para não pagar o transporte público. Servia também para dar bengaladas nos amigos ou inimigos que se metiam com ele quando estava muito bravo.

O suplício longo e tortuoso de seus últimos anos – um alcoolismo que parecia sem cura, a falta absoluta de recursos para comer, vestir, se locomover – foi visto por muita gente como decadência. Mas para quem o conheceu em tantas facetas era difícil pensar dessa maneira, já que ele mostrava lampejos de uma consciência-alucinada: podia-se pensar que todos aqueles procedimentos faziam parte de um projeto de vida.

O Inácio Araújo me contou uma que eu achei preciosa para conhecer a alma de Jairo: poucos meses antes de seu falecimento, estando Jairo internado no Hospital das Clínicas, muito doente, quase sem nenhuma roupa para vestir, sem uma casa em condições para recebê-lo quando saísse de lá, Inácio pergunta o que ele estaria precisando, algo que ele pudesse trazer em uma próxima visita. Jairo responde seriamente e sem hesitar: "um chocolate suíço".

Guiomar Ramos