Uma certa esquizofrenia formal

Entre as diversas grandes produções americanas a emergirem nos cinemas brasileiros ao longo do último ano, se destaca um pequeno grupo de filmes, de origens e interesses bastante diferentes, calcados em forte estilo próprio na maneira de filmar e narrar, criando um tipo de escape formal - filmes que se parecem pouco entre si, mas menos ainda com tudo que se costuma ver. Oriundos de diferentes influências, uns de dentro do cinemão americano mesmo, outros de filmes B, e principalmente um interesse forte em alguns destes filmes em criar um diálogo com o cinema oriental: sua maneira de narrar e filmar suas peripécias. Todos estes filmes tentam trabalhar suas fortes influências, nem sempre com o mesmo sucesso, mas pelo menos não temendo errar.

Fazendo sua primeira investida como cineasta, George Clooney traçou em Confissões de Uma Mente Perigosa um certo apuro visual que se mostrou vital para grande parte das qualidades do filme, sendo que os amigos Steven Soderbergh e os irmãos Coen são claramente fontes de cinema das quais mais se aproxima. Clooney trabalha estas proximidades tanto no tom com o qual guia o filme, como também na fotografia forte em cores, mas se sai com uma obra que consegue escapar de uma mera variação dos citados cinemas, ramo no qual nem todos que trabalham influências conseguem sucesso. Chega a ser curioso ver no mesmo ano em que os Coen apresentam seu trabalho menos interessante dentro de sua obra, que Clooney aflore em seu filme com alguns dos elementos coenianos que, bem trabalhados, melhor funcionem.

Num tipo bastante diferente de proposta e idéia, Apanhador de Sonhos talvez seja um dos mais bizarros filmes produzidos por Hollywood, não se parecendo com nada já feito. Pode-se afirmar que o filme possua traços das mais diversas escolas cinematográficas, dos filmes mais trashs até um certo horror europeu, entrando num caldeirão quase intraduzível em palavras. Marcando a volta a filmes de maiores orçamentos por Lawrence Kasdan, cineasta que fora um dos mais importantes do cinema americano na década de 80, e que acabou aos poucos sendo meio deixado de lado na década seguinte, trata-se de um filme único em suas qualidades e defeitos, que se torna uma jornada cada vez mais bizarra e interessante a medida que avança. Passando pelos mais estranhos tiques nas atuações e personagens (Morgan Freeman como um militar malvado com direito a sobrancelhas empinadas e tudo), efeitos bizarros (parecendo ter sido entregue a um especialista em filmes B) e algumas cenas únicas, tendo como grande expoente a já antológica cena da fobia anal, com Jason Lee e a privada em um momento quase indescritível. É um tipo estranho até mesmo para se relacionar com, interessante em todos os termos.

Uma das fortes tendências entre estes filmes particulares, é a forte influência do cinema oriental, sobretudo Hong Kong. Se talvez nenhum dos filmes que partilham desta influência possa soar à primeira vista tão estranho numa comparação direta com o filme de Kasdan, o senso de narrativa (ou em alguns casos, a quase ausência de uma), e principalmente o modo como trabalham estas influências na forma dos filmes os colocam de maneira tão ou mais peculiar dentro da indústria.Cineasta-chave tanto para o cinema local quanto para o mundial, Tsui Hark é certamente de onde emanam mais influências, digeridas de maneira muito diferentes.

O caso crônico seria o da franquia Matrix, que demonstrava desde o primeiro filme, em 1999, seu interesse pelo cinema de Hark, que viria a se tornar até mais forte nos seguintes Reloaded e Revolutions. Seria se cegar por demais não observar que existem vários tipos diferentes de influências dentro do grande caldo, mal estruturado de forma geral, que são estes filmes. Mas, se considerando que a maioria destas influências vem dos mangas e do videogame, a mais forte (e que reflete alguns dos melhores momentos destes filmes) calcada no cinema é a de Hark. Mas, como não há nada levado em um caminho mais interessante, fica sempre a impressão de que o material poderia ter rendido mais. As duas seqüências são de tal forma diferentes do primeiro, que até mesmo a fotografia, que no primeiro dava uma sensação de ser lavada, foi a fundo no verde-musgo – há tanta preocupação em fazer jus ás suas homenagens, que os irmãos Wachowski parecem o tempo todo se perderem, e não é diferente no que diz a respeito a Hark.

Expoente fácil e talvez dos mais positivos desta safra, As Panteras Detonando, com seu senso anarrativo e principalmente com seus corpos em movimento, é mais um a beber da fonte de Hark. Falar sobre o trabalho "anarrativo" do filme seria chover no molhado, mas é sempre importante relembrar que McG supriu bem a idéia dos corpos em movimento de Hark, e, à sua maneira, soube os filmar como poucos. Se não chega à beleza de um O Tempo e a Maré, foi certamente um dos poucos a realmente acertar no trabalho com as influências. Ao contrário dos Wachowski, incapazes de adequar seu interesse em Hark a seu cinema, McG parece apontar um caminho bem mais interessante de trabalhar as influências deste grande cineasta. Mas a influência Hark não pára por aí: filmando com seu estilo pessoal, e mostrando um certo olhar de filmes B (em uma produção grande), Andrzej Bartkowiak mostrou em Contra o Tempo mais uma vez que se não é tão estranho (tal qual em seus filmes anteriores Rede de Corrupção e Romeu Tem Que Morrer), sabe bem como filmar ação. E Hark é em vários momentos lembrado na maneira como Bartkowiak conduz estas seqüências, de longe as melhores do filme.

Restam então dois casos mais particulares, por se tratarem de orientais infiltrados no cinema americano: Jackie Chan e Ronny Yu. Chan além de um grande ator e cineasta, é um dos maiores astros do cinema mundialmente, e seu salto aos EUA pela segunda vez (e agora com sucesso) foi um passo complicado para ele. Geralmente tendo de trabalhar com roteiros esquemáticos e sem maiores liberdades criativas que pudessem ir adiante de trabalhos com dublês (salve o primeiro Bater ou Correr), seus filmes americanos sempre pareciam no máximo interessantes pela presença de Jackie. De certa forma Bater ou Correr em Londres é o filme a ir mais longe, reunindo a ótima parceria de Jackie com Owen Wilson, e com o diretor David Dobkin assumindo uma postura mais aberta - realizando um filme que se aproxima da musicalidade dos filmes do Chan-cineasta, e salvo alguns momentos em que o filme parece correr um tanto, conseguindo uma sintonia muito forte com Chan, onde até mesmo a ordem em que tudo parece despencar na narrativa não lembra em nada a cartilha da maioria dos filmes de Jackie nos EUA até ali.

Com Yu, os rumos são diferentes. Independente de seguir fazendo filmes comerciais, o cineasta parece dar pouca importância a isto. Renegado a este tipo de espaço mesmo nos tempos de Hong Kong – seu grande filme é Entre o Amor & a Glória, que originalmente lhe fora encomendado para ser um blockbuster local baseado num dos livros mais famosos por lá – isso nunca tirou de Yu a capacidade de trabalhar a imagem das maneiras mais diferentes. Um formalista nato, capaz de trabalhar cores e espaços de maneira únicas e engenhosas, mesmo quando tinha em mãos um trabalho limitado como em A Noiva de Chucky ou Guerreiros da Virtude. Em seu filme mais recente, Freddy vs Jason a coisa não foi diferente, e Yu realizou mais um trabalho que se parece com tudo, mas ao mesmo tempo com nada - partindo de um roteiro teoricamente esquemático para realizar um filme bastante interessante. Faz terror com comédia sem cair na sátira barata, mas nem por isso deixando de ser cômico; usou dois personagens míticos do cinema de horror americano e conseguiu fazer um trabalho autoral sem deixar de satisfazer aqueles fãs apurados. Se não se trata de um grande filme, é fácil notar que Yu não abandona vários hábitos (as cores sendo diversamente vivas e ao mesmo tempo quase que tenebrosas), sem fazer com que soem repetitivos. Vale como uma observação final sobre Yu mencionar que chegou tardiamente aos cinemas brasileiros Baladas, Rachas e um Louco de Kilt, filme anterior do cineasta, que mesmo se tratando de uma produção britânica, não abandona em nada o estilo pessoal e sempre interessante de Yu filmar.

Se nem todos os filmes mencionados acertam, não deixam de ser interessantes cada a um à sua maneira, refletindo que cinema gera cinema, mesmo quando o resultado não é dos melhores. Resta torcer para que, independente de acertos ou erros, se continue essa tendência formal de se fugir da obviedade, de se trabalhar novas e velhas influências, de se arriscar em novos terrenos. E é sempre bom saber que ainda existem cineastas que vão ao cinema.

Guilherme Martins