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Um semblante contraposto à explosão lancinante de luzes, sombras, billboards e mega-edifícios na cidade de Tóquio. A expressão cansada, os olhos fatigados, seu corpo encolhido na poltrona de trás do carro enquanto repousa... Todo esse trabalho com o corpo do intérprete nos dá uma evidência daquilo que Sofia Coppola tem em mente para seu segundo filme. De repente, algo acontece e tudo muda: os olhos se abrem, ficam chocados com aquilo que se manifesta do lado de fora, reagem com absoluta surpresa, não sabem para onde nem de que maneira encarar um mundo que começa a se configurar. Essa surpresa, essa inquietação, essa incapacidade de dar contas das coisas (e de manter ao mesmo tempo uma paixão e um fascínio enorme por estas), isso tudo é Bill Murray. E Scarlett Johansson. E Sofia Coppola. Ir ao Japão, encenar situações, filmar pessoas e locais, conceber um filme, perder-se um pouco no ambiente estranho de uma metrópole asiática, gastar alguns milhões de dólares em 27 dias... Isso para Murray, Johansson e Coppola procurarem algo. O zapear pelos canais de televisão japoneses, os passeios de metrô, as andanças noturnas, as conversas ao telefone, as passagens pelos fliperamas, os olhares que tentam perpassar as janelas e os limites físicos do hotel... Se o espaço é um de constante modelação e recriação (tudo é fluxo, portanto tudo é espaço), o tempo para Coppola é justamente o da passagem: o fluxo constante de pedestres pelas ruas, o excesso de informação, os passeios em ônibus e táxis; estar no mundo e fazer parte desse movimento, tempos mortos, dormir, permanecer inerte na cama, arrumar o banheiro, olhar-se no espelho... É toda essa experiência que diretora e protagonistas de Encontros e Desencontros dividem. Tratar eventos transitórios como experiências etéreas, este é o programa de Sofia Coppola. De certa forma já era assim em Virgens Suicidas, mas Encontros e Desencontros seria a carta de princípios, a aposta total nessa idéia. Por que não esquecemos dos passeios de Charlotte (Scarlett Johansson), das gravações dos comerciais protagonizados por Bob Harris (Bill Murray), da coletiva dada pela atriz famosa (Anna Farris), dos encontros casuais no bar do hotel? Por haver da parte de Coppola uma confiança de que todos esses momentos fugidios representam algo de interessante, algo que importa: o sorriso torto de Charlotte numa cena; a pressa e a afobação de John (Giovanni Ribisi), seu marido, em outra; a indiferença de Bob enquanto assiste um dos seus filmes na televisão, dublado em japonês; o ônibus que passa com o retrato gigante de Bob colado nas suas laterais, e a saudação que Bob dá ao ônibus. As distâncias, as aproximações, as justaposições. O embate entre hotel e espaço urbano, entre Charlotte apoiada contra a janela de seu quarto e a insanidade panóptica de Tóquio (que parece envolve-la e exclui-la ao mesmo tempo), entre Bob Harris e seus fãs, os diretores de publicidade, os tradutores... Geografia de corpos, arquitetura do movimento. Num primeiro momento temos uma fissura, a impossibilidade de uma relação com o exterior. O golpe de gênio: Bob diz a Charlotte que está planejando uma fuga, e é a partir das errâncias destes dois personagens pela Tóquio do filme que décor e personagens passam a encantar-se mutuamente, a pertencerem a um mundo só. É desta forma que Coppola se junta à mais frontal, mais forte tradição do cinema contemporâneo e consegue com Encontros e Desencontros não apenas um retorno a Cassavetes e Tati como também uma resposta direta às obras (essenciais) de Abel Ferrara, Wes Anderson, Wong Kar-wai, Claire Denis, Jia Zhangke e Olivier Assayas: todos cineastas da procura, todos cineastas que partem das procuras de seus personagens para esboçarem motivos de uma encenação, a inspiração para uma cena, uma imagem que lhes seja de interesse. Tudo isso – a procura, o acaso, as separações, passeios casuais, ir ao bar, stripclubs, correr pela cidade, dormir num táxi, esperar, um carinho, dividir uma cama e conversar, olhar pela janela – culmina na cena mais poderosa, no momento de cinema mais encantador deste ano: a cena do karaokê. As trocas de olhares, as pequenas melodias criadas com ou a partir das músicas, as danças, as reações dos personagens e eles mesmos reagindo uns aos outros, Bob e Charlotte partindo de Brass in Pocket e More Than This para confidenciarem o que sentem: é disso e disso apenas que Sofia Coppola cria todo e o melhor cinema, um cinema de reação direta ao objeto que se propõe filmar (improvisos, erros, acidentes: espaço para uma abundante invenção), que põe todas as suas fichas numa pulsão de vida que parte dos intérpretes e da relação destes com o décor, a própria música como décor e o cinema mesmo como música. A poesia de Encontros e Desencontros está toda nisso, "deixar as coisas acontecerem e encontrar a melhor maneira de filmá-las". Questão de cinema: tudo vive em Encontros e Desencontros, tudo respira (e tudo é respiro). Encarados pelo sushi-bar onde Bob e Charlotte se divertem aos custos do dedo ferido dela ou pelas perambulações de Charlotte por Tóquio e arredores, nos vemos de repente pensando em outras coisas – a ironia de certas situações, uma garota de que se gostou, uma cena de Casa de Bambu ou outra de Um Lobisomem Americano em Londres, um passeio realizado meio que sem querer quando perdido em certo lugar. Ainda território desconhecido, Encontros e Desencontros é justamente esse lugar onde desejamos nos perder para uma hora encontrar-nos a nós mesmos. Bruno Andrade |
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