19
razões para amar
Encontros e Desencontros

1) Era uma vez em
Tóquio. Lá na terra de Ozu, Sofia Coppola realizou um filme
que, fazendo eco à crença do grande mestre do cinema japonês
na "incomensurável beleza dos momentos breves e banais"
(ver o texto de Paulo Ricardo de Almeida na edição 56 de
Contracampo), é muito menos uma lamentação do tempo
que passa e não retorna do que um elogio do efêmero. Certas
coisas só são perfeitas porque não perduram nem se
repetem. Consciente disso, Charlotte (Scarlett Johansson) diz que não
adiantaria voltar a Tóquio no futuro e repetir tudo que está
vivendo ao lado de Bob (Bill Murray), pois nunca seria igual. E não
seria, faltariam os ingrediente principais (a espontaneidade, a descoberta,
o acaso). Os grandes momentos, individuados no tempo e na história,
valem por si mesmos, e não à toa Encontros e Desencontros
é um filme que não fica na cabeça como algo a ser
digerido lentamente, mas sim despertando vontade de ser visto e revisto
já no dia seguinte. Há mesmo muita beleza nessa efemeridade.
2) As músicas.
O uso da trilha sonora em Encontros e Desencontros não é
meramente ilustrativo, é narrativo. Mesmo nas cenas de perambulação,
tão recorrentes quanto importantes na construção
do filme (em termos não só de espaço e ritmo, mas
principalmente de olhar e sentimento), as músicas narram, funcionam
como motivos sonoros, como formas puras de encadear significados primários.
Pureza de significação que é conseqüência
de um olhar inevitavelmente sentimental, um olhar extremamente afetado
pelo espaço e pelas circunstâncias. Tais cenas, que não
podem ser vistas como simples hiatos narrativos, participam da estrutura
de base do filme.
3) Toda a cena do
caraoquê, quando o filme finalmente transborda da tela. Mise-en-scène,
trabalho dos atores, improvisos: tudo se torna inextricável. Emocionante
"perda de controle" do filme, em que cineasta e personagens
disputam um mesmo olhar sobre a cidade, um mesmo sentimento sobre o mundo.
4) Scarlett Johansson
cantando "Brass in pocket" (The Pretenders), enquanto Bill Murray
dirige a ela o backing vocal da música ("you're so
special...").
5) Scarlet Johansson
do começo ao fim do filme.
6) Scarlet Johansson.
7) Bill Murray cantando
"More than this" (The Roxy Music), mal se entendendo com o ritmo
e a afinação.
8) Bill Murray na
cena da filmagem do comercial e na da sessão de fotografias para
a propaganda do tal uísque. As respostas rápidas, as expressões
cínicas: o grande ator de comédia. Bill Murray na cena de
despedida no saguão do hotel, seus olhares na direção
de Johansson: o grande ator.
9) Bill Murray.
10) "Sometimes"
(My Bloody Valentine) tocando numa das cenas de carro do filme, a que
sucede o caraoquê. Bill Murray dormindo no banco de trás
do táxi e Johansson olhando pela janela, para na cena seguinte,
no corredor do hotel, haver a inversão: Johansson, adormecida,
sendo levada no colo por Murray. O filme é montado com sutilezas,
com discretos falsos-raccords, o que tem um valor conceitual incrível
em se tratando de um filme onde a construção do ponto de
vista é um elemento central de conteúdo. A desorientação
dos personagens aplicada sutilmente à forma.
11) Tóquio
não nos pertence. O espaço irredutível a um olhar,
a uma fotografia, a um predicativo. Fim de tarde, Charlotte sentada à
janela do quarto no alto do hotel; lá embaixo a cidade acende suas
luzes, incomensurável em sua riqueza de signos. Os sons de fora
vedados pelo vidro da janela. Charlotte como que paira sobre Tóquio,
de costas para a câmera, que realiza dois lentos movimentos em torno
dela. Mas ali seu sentimento não é de pertença, e
sim de deslocamento e solidão (ela ainda não "descobriu"
a cidade ao lado de Bob). Durante boa parte do filme eles estão
observando Tóquio através do vidro, material que permite
a passagem do olhar, mas impede a passagem de todo o resto (tanto sons
quanto sólidos). Continua havendo uma barreira. Encontros e
Desencontros se auto-enuncia enquanto ponto de vista, desenvolvendo-o
em simultaneidade ao dos personagens. Não há como relegar
a abordagem de Coppola ao deboche ou à estereotipia, pois sua postura
não é somente de respeitar a diferença: é
também, e mais ainda, de se encantar com ela. O olhar sobre o espaço
não precede o filme, mas sim se constrói junto dele, transforma-se
ao longo da narrativa. O que existe de uma cultura alheia, para quem a
conhece de longe, são mesmo os estereótipos. Somente a convivência
tira o véu da tipologia e permite que se veja o que há por
detrás, permite que se enxergue a cultura em profundidade. O filme
simplesmente respeita (e valoriza) esse processo.
12) Assim como As
Férias do Sr. Hulot, de Jacques Tati, Encontros e Desencontros
é um autêntico filme de viagem. Sofia Coppola foi tremendamente
feliz na construção de um tempo subjetivo, de um sentimento
de passagem que desperta nostalgia precoce (sem condenar tal passagem,
como já foi dito). O filme acaba e o que lamentamos não
é o escoamento do tempo propriamente dito, mas sim o fim de uma
viagem, o fim da viagem.
13) A relação
entre espaço e luz e a fotografia de Lance Acord, trabalhando o
universo multicolorido de Tóquio de modo a preservar sua materialidade
(iluminação natural preconizada, muitas cenas de rua, filmagem
em locações, nada de pré-estilização
do espaço) e, ao mesmo tempo, fazê-la parecer uma cidade
de brinquedo (de novo Tati, dessa vez por Playtime – no qual a
cidade, diferentemente, é cenográfica).
14) Uma relação
entre duas pessoas que, antes de se concentrar na abstração,
no amor não consumado fisicamente, alimenta-se do circunstancial,
do (des)encontro fortuito, e carrega um enorme teor de verdade. O "consumar-se"
ou não é uma mera questão de fuso horário,
de ajuste do tempo, seja o tempo de vida daqueles personagens de idades
tão diferentes, seja o relógio fisiológico que precisa
se adequar ao outro lado do globo, seja a duração de um
trajeto que atrasa ou antecipa o que seria o grande momento, seja o tempo
cosmológico que incide sobre todas as coisas (concretas ou abstratas).
15) Fábula.
Bob, já a caminho do aeroporto, avista Charlotte em meio à
multidão e vai ao encontro dela, culminando na doce cena do sussurro
e do beijo. O filme efetua, então, sua última "translação":
para um universo mágico. Muito se especula sobre o que Bob teria
sussurrado no ouvido de Charlotte, mas a principal indagação
com relação a essa cena deve ser outra: onde termina a realidade
e começa a fábula?
16) "Just like
honey" (The Jesus & Mary Chain) tocando no final, após
a despedida. É uma sutileza o que faz essa cena ser totalmente
distinta da cena de carro que ocorre logo no início do filme. O
estranhamento do espaço se transfigurou, e nele se depositou uma
imensa carga de significado, de memória afetiva.
17) A seqüência
em Kioto, também ela mágica.
18) Bill Murray e
Scarlett Johansson deitados na cama do quarto do hotel, filmados em plongé,
ele acariciando o pé dela, olhar tenso na direção
do teto. Plano perfeito para fechar um diálogo que começara
com os corpos aparecendo refletidos no vidro, contornos difusos, enquanto
ela falava da fugacidade daquele encontro.
19) Cinema direto
(do coração).
"Mais que isso"?
Luiz Carlos Oliveira
Jr.
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