A Vingança de Um Pistoleiro, de Monte Hellman
Ride in the Whirlwind, EUA, 1965

Só é moderno quem é eterno.

O espaço impera. Do alto de uma colina Harry Dean Stanton e Rupert Crosse observam a chegada de uma carroça que será assaltada por ambos e mais alguns foras-da-lei. Nada além de formações, de relevos, de texturas, de geologias. Os pontos de vista multiplicam-se, a carroça continua a aproximar-se e os assaltantes preparam suas armas e põem capuzes sobre seus rostos.

É assim que A Vingança de um Pistoleiro começa. A presença marcante de um cenário que define as ações dos personagens, de um correr do tempo que faz com que todas essas ações desapareçam no meio da aridez e aspereza das planícies. Essa estranha arte de transformar uma paisagem embrutecida e ressecada - de fazer o que no fim das contas é um cinema da terra - em um rico objeto cinematográfico sempre foi o trunfo de um grupo bastante seleto de diretores (uma confraria que abriga tanto Anthony Mann quanto Jim Jarmusch, John Ford e Jean-Marie Straub, Abbas Kiarostami e Howard Hawks). Uma pergunta: o que destaca Monte Hellman diante de nomes tão expressivos? O simples fato de ser o único dentre esses homens a desempenhar o papel de mediador, de ter sido alguém que num determinado momento abriu uma passagem pela qual toda uma história do cinema norte-americano precisou atravessar.

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É chegada a hora da ventania (o whirlwind do título original). Como acontece com tudo aquilo que um dia foi (ou seja, que uma hora deixou de ser), a ventania apaga as impressões de todos os trajetos e lega à terra nada mais do que uma sugestão, uma insinuação de percursos outrora trilhados. Pouco importa se são as rodas de uma carroça ou as patas de um cavalo que deixam uma trilha (como pouco importa se a carroça ou o cavalo pertence a um cowboy ou um fora-da-lei) pois em algum momento ambas serão implacavelmente desvanecidas pelo sopro do vento, desaparecendo talvez, ou talvez permanecendo como simples traços.

Uma lufada de ar que empurra os dois assaltantes na descida do morro; o sopro que se manifesta enquanto Blind Dick e Indian Joe vigiam a carroça que atravessa o deserto; a tempestade que envolve Jack Nicholson na última e inacreditável seqüência... O problema todo de Hellman em A Vingança de um Pistoleiro é esse - filmar o vento. O vento em todas as suas modalidades, todas as variações possíveis de seu registro cinematográfico - começar do som para torná-lo imagem, fazer o caminho inverso, institui-lo como criador de tempos, observar seu percurso num espaço previamente determinado pela câmera -, todas as maneiras de transformá-lo num elemento material e temporal. Como sempre em Hellman, são as escolhas aparentemente simples que induzem aos resultados mais abstratos.

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Nenhum outro diretor norte-americano traz mais à mente o cinema da dupla Jean-Marie Straub-Danièle Huillet. O despojamento de todos os objetos cenográficos, a extensão temporal de cada plano, o trabalho rígido com a câmera cinematográfica, a austeridade (do texto, do trabalho com os atores, da dramaturgia, do trabalho com o recito)... Seria absurdo de fato trazer a este texto tudo aquilo que nos faz lembrar dos cineastas franceses, mas um item em especial faz a comparação ficar um tanto mais intensa: o personagem de Jack Nicholson. Outsider no grupo de cowboys do qual faz parte ainda no início do filme, outcast a partir do momento em que é confundido com os assaltantes da primeira cena e outlaw ao final de sua jornada, ele é o personagem não resignado, não reconciliado por natureza.

O próprio Hellman seria também um personagem desta estirpe, alguém que escolheu não se acomodar na produção norte-americana... de qualquer período. Se duas figuras de estilo manifestam-se aqui - a discrição e a rigidez, Budd Boetticher e Robert Bresson -, a matriz conceitual do filme pertence à obra de apenas um cineasta, aquele a quem Jacques Rivette chamava de "o cineasta do conceito", figura central de muitas das discussões sobre as heranças legadas ao cinema moderno (além de Hellman podemos citar também Godard, Chabrol, Losey e De Palma como devedores incondicionais de sua obra). Se de fato existe algo que torna admissível uma aproximação Straub-Hellman, se um nome entre vários se impõe, esse é o de Fritz Lang. Nada em cinema mais próximo de Vive-se Só uma Vez ou A Fúria, das situações vividas pelos personagens de Henry Fonda e Spencer Tracy: nenhuma resposta é possível, e estamos no reino da ambigüidade.

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Se alguma coisa dá a A Vingança de um Pistoleiro uma energia inesgotável, que nada parece abalar, é justamente esse gosto pela austeridade, por um rigor cênico que sempre procura as soluções mais satisfatórias para os problemas que Hellman busca desenvolver, por tudo aquilo que compõe e revela um trabalho de mise en scène. A maneira que Hellman utiliza um mínimo de signos para retirar um máximo de significações não implica realmente numa estratégia minimalista (a não ser que queiramos considerar os resultados de seu trabalho com espaço cênico e planos-seqüência como mínimos), mas sim numa essencialidade que é a própria beleza de seu cinema. Lang novamente, Straub também.

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Uma afirmação bem pomposa é feita ao final do segundo parágrafo deste texto, a de que Hellman teria aberto uma passagem pela qual uma parte da história do cinema norte-americano teve de atravessar. Essa passagem, a partir de que Hellman a teria constituído? Possivelmente do curto-circuito entre Michelangelo Antonioni e Roger Corman, John Ford e Alain Resnais, Sergei Paradjanov e Fritz Lang, Leo McCarey e Philippe Garrel... no fim das contas, da década de 60 e de todos os esforços realizados por diversos cineastas durante o período. Uma pergunta mais crucial agora: o que foi essa passagem? Pouco mais que um momento onde era necessário atravessar um local distante e pouco conhecido para talvez reencontrar a terra de origem (O Tiro Certo), talvez não (Corrida Sem Fim). Em outras palavras, era preciso filmar Cameron Mitchell e Jack Nicholson jogando cartas num casebre enquanto aguardam um momento em que poderão continuar sua fuga; deixar Millie Perkins conversar com Nicholson sobre a situação que começava a manifestar-se entre eles e permitir a todos os silêncios e todas as hesitações dos personagens dominar e pontuar o tempo da cena; mais do que qualquer coisa, era preciso procurar alguma coisa dentro de um universo já mapeado, definido e circunscrito por uma longa história que já cobria, por volta de 1965, universos e mundos infindáveis. O gênio de Hellman foi criar a partir dessa procura uma imagem epítome de todo o cinema moderno: o último plano do filme, quando o cowboy Nicholson segue cavalgando até se fazer desaparecer junto ao vento...

Bruno Andrade