O
Tiro Certo, de Monte Hellman
The Shooting, EUA, 1967
As exegeses são
quase unânimes ao declarar The Shooting, quinto longa-metragem
de Monte Hellman, como uma espécie de western ontológico,
no sentido de livrar-se de todas as amarras de contingência da história
a ser contada (psicologia, trama) e focar-se naquilo que seria o arquétipo
por excelência do filme de faroeste: luta pela justiça através
da violência; espaços desérticos e/ou inabitados,
sempre suntuosos; personagens com senso próprio de justiça;
pistoleiros, mulheres misteriosas, matadores regenerados. Essa retomada
do western na chave da releitura metalingüística, assim, associaria
de cara Monte Hellman a realizadores como Sam Peckinpah ou Sergio Leone.
A comparação faz até um pouco de sentido, mas as
conclusões parecem um pouco apressadas. De um certo modo, Monte
Hellman situa-se historicamente num certo período do cinema americano
em que já se sente a passagem de uma era clássica: assim,
as variações a operar em relação ao cinema
da "era de ouro" se dará mais em forma "modal"
(estilização dos espaços e dos personagens em Leone,
coreografização da barbárie em Peckinpah, instalação
num presente absoluto em Hellman) do que em modo "tonal" (trama,
psicologia da narrativa, etc.). Mas se podemos falar de cinema moderno
a partir dos westerns de Hellman, não é tanto pelo que aproxima
seu trabalho do de Leone e Peckinpah, mas antes por aquilo que o separa
deles.
Ora, desde o momento
que começa The Shooting (combinemos que O Tiro Certo
é um título ridículo demais para ser repetido por
aí), o filme parece um western tradicional: Warren Oates pára
com seu cavalo num lago, percebe que pode estar sendo seguido, volta a
seu acampamento, observa uma lápide improvisada que não
estava lá antes de sua saída e, enquanto reflete, é
recebido a bala pelo menino que lá trabalha. É só
aos poucos que um certo sentimento de estranheza se instala e passa a
povoar a experiência do filme por dentro. Percebemos que, quanto
mais o filme parece evoluir, dispomos de menos informações
para entender os comportamentos dos personagens ou os jogos de relação
que fazem a trama do filme. A segunda seqüência já é
a esse respeito bastante reveladora. Quando Coley (Will Hutchings) se
acalma e pára de atirar, ele passa a relatar para Willet Gashade
(Oates) o ocorrido. Entram então cenas de flashback subjetivo de
Coley em sua tenda, vendo pela fresta primeiro um desentendimento entre
Leland e Coin, irmão de Willet, e, mais tarde, Leland discutindo
com alguém e sendo assassinado. O motivo da discussão e
da morte, o possível atropelamento de uma mulher e de um garotinho
pelo cavalo de Coin, é ouvido por um personagem grogue de sono.
É nesse terreno das impressões incertas e pantanosas que
The Shooting estabelece a relação com seus espectadores.
Mesmo que haja flashbacks,
eles sempre emergem a partir do presente e enquanto blocos de memória
no presente, como a dilatação do esquema sensório-motor
bergsoniana. O que mais impressiona em The Shooting (e também
em Two-Lane Black-Top/Corrida Sem Fim, provavelmente sua obra-prima)
é a instalação de uma eterna situação
de presente contínuo, sem passado ou sem futuro, sem onipresença
ou onisciência do narrador, tão perdido em sensações
desconcatenadas quanto nós ou os personagens. Além de Coley
e Willet, agregam-se ao grupo uma mulher (Millie Perkins) cujo nome fica
oculto até o fim do filme (o máximo que poderíamos
chamá-la é de "not Hortensia") e, mais tarde,
um pistoleiro (interpretado por Jack Nicholson).
The Shooting
parece se comprazer em destituir de importância tudo aquilo que
costuma fazer a felicidade dos analistas e admiradores de cinema unicamente
narrativo: é impossível explicar completamente a motivação
de cada personagem (talvez apenas a de Coley, o jovem que cai presa do
amor de uma mulher fatal), assim como também não existe
progressão de trama a não ser no sentido em que novos
personagens se adicionam à trama e passam a tornar as relações
entre eles mais densas. Em compensação, o filme nos delicia
o tempo todo com pequenos jogos de lógica narrativa, como por exemplo
num momento em que Coley, em pé, conversa com a mulher secreta,
deitada no chão. Eles conversam em campo/contracampo, e após
uma frase dela, no mesmo eixo, Coley está diante dela, mas o dia
já escureceu. Defeito de continuidade luminosa na cena? Não.
O plano seguinte nos indica que eles já não estão
mais no mesmo lugar e já passaram-se algumas horas em relação
ao plano (que compreendemos só aí ser o fim da seqüência)
anterior.
Comparações
não faltam. Poderíamos chamar The Shooting de um
proto-Gerry, no sentido de explorar um mínimo fio narrativo
no meio de uma paisagem desértica. Poderíamos aproximar
o filme do mundo de Samuel Beckett, um mundo da reiteração
que se fecha em si mesmo e não abre para mais nada (o fim do filme
e a inserção de um personagem misterioso, deitado a esmo
no deserto, parecem indicar claramente esse sentido). Todas essas associações
são bastante pertinentes, mas elas não conseguem explicar
a fluidez da câmera e a secura da narrativa (nesse sentido muito
próxima da de outro herói esquecido do cinema americano
nos anos 70, o Bob Rafaelson de Five Easy Pieces e King Of Marvin
Gardens). Hellman não faz em The Shooting um uso sistemático
do plano seqüência, mas a contínua filmagem de momentos
prosaicos, "sem ação", faz com que seus planos
um pouco maiores em tamanho do que a ação neles contida
ou comparando-se com a média da produção cinematográfica
feita na época ganhem um peso particular. A elegância
e austeridade com que Monte Hellman constrói seus planos de forma
que nada pareça prescindível naquilo que o filme mostra
o coloca em estreita sintonia com autores como Scott Fitzgerald ou Hemingway,
malditos dos anos 20 com Hellman foi nos 60/70.
The Shooting
poderia se traduzir, inicialmente, por "o tiroteio". É
a acepção mais rotineira da palavra, mas mesmo que haja
uma única troca de tiros, no final, quase todos os tiros que são
disparados no filme têm em comum o fato de acontecerem a esmo. Atira-se
no amigo no começo do filme (Coley em Willet); depois em Leland,
matando-o; a moça atira em direção ao céu
(sabe-se depois que são sinais para o pistoleiro que segue o grupo
à distância) e, mais tardem, atira num pássaro. A
seqüência final é a única em que os tiros são
disparados com um motivo que pareça motivado em relação
aos personagens (ao longo do filme Willet percebe que a tarefa para a
qual foi pago é a perseguição de seu irmão
Coin). Mesmo assim, o espírito de desnecessidade que povoa o filme,
além do distanciamento da mise-en-scène, fazem de tudo um
grande não-espetáculo de violência aleatória.
Não-espetáculo porque não há nenhum gozo do
olho. Quando Millie Perkins finalmente encontra Coin, na subida de uma
pedra, a câmera assume o slow motion e enquadra somente o rosto
dos personagens. Coin (interpretado também por Warren Oates) atira,
a mulher também, vários disparos são ouvidos mas
o filme não faz questão de revelar quem foi alvejado. O
último plano mostra a figura solitária de Jack Nicholson,
muito longe, sem cavalo, no deserto. The Shooting, mais que "o
tiroteio" ou "o tiro certo", seria então "o
atirar", no infinitivo, e o filme assim se estabeleceria como um
tratado sobre o vazio da violência (e, como corolário, sobre
o vazio da narração). Filmar a poesia desse vazio é
o que faz de Monte Hellman um grande cineasta.
Ruy Gardnier
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