Matinee,
de Joe Dante

EUA, 1993


Muito já foi dito sobre o fascínio exercido pelo cinema de ficção científica e terror dos anos 50 sobre a obra de Joe Dante. E também é mais que sabido que tais filmes refletiam a paranóia da Guerra Fria sobre a classe média americana. Matinee parte da idéia de retratar esta paranóia no momento histórico em que a então incessante tensão entre EUA e URSS atingiu seu ponto máximo: a crise dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962, durante o governo Kennedy, quando a Guerra Fria quase esquentou de fato. Inteligentemente, o cenário escolhido para a ação de filme é uma pequena cidade da Flórida, distante apenas 150 km do palco da crise e onde se localiza uma base militar na qual reside o protagonista. É em meio a esse quase caos que o cineasta Lawrence Woolsey vem lançar seu filme ‘Hormiga’, como diz o título, sobre um homem que, com efeito de radiação, vai aos poucos se transformando numa formiga.

O personagem principal, o adolescente Gene Loomis (Simon Fenton), certamente muito tem do próprio Dante, em sua quase obsessão por filmes e histórias de monstros. E se as referências a esse gênero cinematográfico abundam em todos os filmes do diretor, é neste em especial onde é feita talvez a mais explícita das homenagens, partindo do próprio Woolsey (John Goodman), que guarda características de um dos papas do terror de baixo orçamento, o produtor-diretor William Castle, que numa época de parcos efeitos especiais, recheava seus filmes de pequenos truques ou pegadinhas eletrônicas para assustar a platéia. Woolsey é um picareta que, apesar de falido, não economiza em recursos sensacionalistas e farsescos para chamar a atenção sobre suas produções ou sobre si mesmo, mas que, ao mesmo tempo, guarda um profundo tesão e carinho pelo seu ofício de fazer cinema, sentindo-se ameaçado pela concorrência de um mundo real ainda mais assustador.

Matinee pode ser visto como um filme de rito de passagem ou amadurecimento, no qual Gene vai aos poucos se apercebendo das farsas que o cercam, seja ao desmascarar as malandragens de Woolsey, ou do circo armado pelos meios de comunicação e pela situação política para disseminar o pânico entre a população desinformada. Mas nem por isso Gene torna-se desencantado. Percebe-se um processo semelhante a uma linha observada na obra de Joe Dante, conforme destacou Filipe Furtado em seu artigo sore a obra do diretor (Contracampo ed. 50), na qual convivem em sincronia a crítica e o afeto à sociedade americana. Sem perder o carinho pelo universo que retrata, Matinee desenha o perfil de uma classe média alienada, que não compreende o quadro político internacional que a cerca, sendo facilmente manipulável por informações parciais ou deturpadas, impingidas pelo rádio ou TV, não muito diferentes dos truques usados por Woolsey, descambando sem muita dificuldade para um contexto de histeria generalizada. O filme também demonstra como este quadro de repressão e desinformação dissemina um meio fértil para a rápida circulação de boatos, seja sobre a eminência da guerra atômica, seja sobre os filmes de Woolsey.

O que torna Matinee uma fita ainda mais atual é que, quarenta anos após a época retratada pelo filme, parece que pouca coisa mudou na sociedade americana, conforme podemos observar em todo o contexto que se seguiu ao 11 de setembro de 2001. Toda a histeria coletiva, desinformação, alienação, xenofobia e patriotada parecem hoje mais vivos que nunca, assim como a repressão a vozes dissonantes ou contestatórias, como a que sofre a garota que virá a a se tornar a namoradinha de Gene, que questiona o ritual escolar de proteção ao ataque nuclear, sendo prontamente taxada de “comunista” e “anti-americana”.

Pena que este clima de crítica ou reflexão se perca um pouco na segunda metade do filme, quando algumas soluções do roteiro (assinado por Charles S. Haas e Jerico Stone) impõem um rítmo irregular. Principalmente pela introdução do personagem do poeta-ladrão, extremamente mal desenhado e desenvolvido, gerando um suspense desnecessário que dilui o humor vindo das inserções de personagens reais durante a sessão, digamos, interativa de ‘Hormiga’. Também desnecessário é o momento do resgate do irmão caçula de Gene no balcão que desaba, que, apesar de dar espaço a uma homenagem a Hitchcock (também presente na personagem de Woolsey), descamba para alguns momentos de pieguice.

Apesar de tudo, fica o clima de uma sincera declaração de amor a um cinema há muito extinto. Se Matinee, além da paixão pelo terror B registra uma certa aversão ao gênero comédia para toda família, com o hilário filme sobre um carrinho de compras humanizado que leva Gene e seu irmão a profundo tédio, fica patente a importância do cinema como registro afetivo, principalmente quando as únicas imagens que vemos do pai de Gene, um militar em que está fora de casa em prontidão pela eminência de guerra, vem através de um filme Super-8 caseiro. E ‘Hormiga’, o filme dentro do filme, não deixa de ser no mínimo fascinante, um pastiche de toda sorte de filme de terror, que parte do absurdo e ao mesmo tempo coerente pressuposto que o personagem teria tido sua transformação detonada ao fazer uma radiografia dentária enquanto uma formiga passeava sobre seu rosto. Citando A Mosca da Cabeça Branca, Frankenstein, King Kong e o que mais lembrarmos, ‘Hormiga’ é Joe Dante em estado bruto.

Gilberto Silva Jr.