Deuses e Generais,
de Ronald F. Maxwell

Gods and Generals, EUA, 2003
Prequel
de Anjos Assassinos (1993), Deuses e Generais primeira
parte da trilogia sobre a Guerra de Secessão que o diretor/roteirista/produtor
Ronald F. Maxwell concluirá com Last Full Measure mostra,
através da ascensão e queda do General Thomas “Stonewall” Jackson (Stephen
Lang), herói da Confederação, os eventos que desencadearam a Guerra Civil,
bem como os três primeiros anos de combate. De ferrenho militarismo, suplantado
apenas por seu fervor presbiteriano, “Stonewall” Jackson surge como figura
ideal para que Maxwell trate, em Deuses e Generais, do tema da
formação da América: a nação cindida, na qual a mesma fé, professada por
ambos os lados, leva à carnificina das batalhas, mas que também propicia
o fim tanto do problema da escravidão quanto do conflito entre o federalismo
do Sul e o centralismo do Norte, que se prolongavam desde a independência
do país.
Presente, desde O Nascimento de Uma Nação (1915), na base da cinematografia
americana, o ápice dessa temática se encontra em John Ford. Assim, é na
comparação com o cinema fordiano que Deuses e Generais revela sua
deficiência, pois enquanto Ford se centra no sacrifício do homem comum
um favor da comunidade, Maxwell, ao contrário, exalta os heróis oficiais,
num filme que se pretende tão fiel aos fatos quanto um livro de História.
No entanto, como se sabe, a História é sempre contada pelo lado vencedor,
que transforma sua versão de acontecimento na única “verdade” possível,
de modo que Maxwell, em Deuses e Generais, faz das minorias (os
negros, os pobres, os imigrantes e os trabalhadores) meras notas de rodapé,
personagens acessórios ao tom solene e oficioso dispensado aos “reais”
heróis americanos, ou seja, aos generais “Stonewall” Jackson e Robert
E. Lee (Robert Duvall) e ao coronel Joshua Lawrence Chamberlain (Jeff
Daniels). Nada mais distante, por conseguinte, de Ford, que glorifica
os derrotados e os marginais, seja no Tom Doniphon (John Wayne) de O
Homem que Matou o Fascínora (1962), que aceita ficar à sombra de Ransom
Stoddard (James Stewart) para dar cabo do Oeste sem lei, ou no Ethan Edwards
(novamente Wayne) de Rastros de Ódio (1956), fantasma condenado
a vagar pela terra por não se encaixar dentro da família que ele próprio
reconstruiu.
São sentidos distintos de heroísmo e, conseqüentemente, do que significa
ser americano. Em Ford, esta identidade se funda no sacrifício necessário
em prol da conquista da democracia, da justiça e da liberdade, ou seja,
relaciona-se à construção mitológica do sonho americano. Já em Maxwell,
não se precisa conquistar tais valores, porque eles se constituem na “verdade
histórica” de um povo predestinado: Deuses e Generais, de fato,
é perpassado pela idéia de que os EUA são o país escolhido por Deus para
levar Sua palavra aos infiéis. De maneira que tanto as prerrogativas do
Sul (evitar a invasão e a destruição de seus valores tradicionais) quanto
as do Norte (manter a integridade do país e propagar os ideais democráticos,
como o término da escravidão) para a guerra, em aparência conflitantes,
na verdade se conciliam, na medida em que ambas refletem o ideário do
regresso conservador que domina a política americana através do governo
de George W. Bush, seja no nacionalismo exacerbado pós-11 de setembro,
seja na missão de impor os valores americanos ao restante do mundo.
Dessa forma, se a Doutrina Bush esconde sob quilos de retórica antiterrorista
as verdadeiras intenções financeiras e geopolíticas por trás das invasões
ao Iraque e ao Afeganistão, Deuses e Generais, igualmente, omite
as causas reais da Guerra de Secessão, que convergem para a problemática
econômica: por exemplo, a abolição da escravidão liga-se à necessidade
que os Estados do Norte possuíam de um mercado consumidor interno (e não
a uma consciência elevada de justiça social), assim como a divisão entre
federalistas e centralistas refere-se ao embate do livre-cambismo, defendido
pelo Sul agro-exportador, com o capitalismo monopolista, praticado pelo
Norte, que visava a industrialização.
Não um mesmo país com uma mesma fé, portanto, como gostaria Maxwell, mas
vários países, visto que, além de cisão Norte/Sul, também havia a divisão
entre ricos e pobres, entre os imigrantes que chegavam da Europa (sobretudo
irlandeses) e aqueles já estabelecidos no país (anglo-saxões, holandeses),
entre brancos, negros e índios, entre católicos e protestantes. Como mostra
Scorsese em Gangues de Nova York, os EUA nasceram de um caldeirão
sócio-cultural movido a ódio e preconceitos, no qual a violência não era
um meio vil, mas necessário, com vistas a um final nobre (conforme está
explícito em Deuses e Generais, cuja guerra, porém, é incomodamente
asséptica: corpos voam pelos ares, como bonecos, mas não existe uma gota
de sangue sequer), e sim uma forma de sobrevivência, uma opção de vida,
pois foi sobre o sangue dos excluídos que se sacrificaram seja
o nativista Bill the Butcher (Daniel Day-Lewis), ou o irlandês Amsterdam
Vallon (Leonardo Di Caprio) , e não sobre generais e heróis que
preenchem frios livros de História, que a América se ergueu.
* * *
Deuses e Generais ganhou edição dupla em DVD. Mesmo que a maior
parte dos dois discos esteja destinada à longa duração do filme (219 minutos)
que vem em widescreen e com a habitual seleção de cenas ,
sobrou espaço para alguns extras, bastante desinteressantes, contudo.
Assim,
no disco 1, além do trailer, há uma breve introdução feita por Ted Turner,
produtor executivo de Deuses e Generais (o que depõe contra a qualidade
do filme), bem como dois clipes musicais: Going Home, de Mary Fahl,
semelhante ao de Enya para O Senhor dos Anéis A Sociedade do
Anel, e Cross the Green Mountain, o que de melhor o DVD possui,
no qual Bob Dylan vaga, qual um flaneur, por um hospital improvisado
no campo de batalha, observando a morte e o sofrimento dos soldados.
Já no disco 2, três curtos documentários. O primeiro, Journey to the
Past, em que Ronald F. Maxwell, na companhia da atriz Donzaleigh Abernathy
(que interpreta a escrava Martha), transformam o que seria um making
of em mais uma aula didática e politicamente correta sobre a pretensa
importância histórica e sociológica de Deuses e Generais, sobretudo
no que tange à escravidão (como se o filme tocasse nesse assunto). Em
Authenticities of the Film, fala-se sobre a fidelidade aos fatos
e detalhes técnicos da batalha de Frederiksburg, ponto culminante do filme.
O último, The Life of Thomas “Stonewall” Jackson, segue o padrão
Discovery Channel de qualidade, como vários historiadores dando seu parecer
sobre o polêmico e complexo herói confederado.
Para fechar, existe também a dispensável campanha publicitária de “Visite
a Virgínia”. Que não deixa de ser a síntese para o DVD de Deuses e
Generais.
Paulo Ricardo
de Almeida
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