Manoel de Oliveira é um cineasta da História, disso todos sabemos. Mas, o que é a História para Oliveira? Ou melhor, aonde esta História se encaixa no seu cinema? Pois, se Oliveira é o cineasta histórico por excelência, isto se dá porque nele a História sempre se dissolve no presente, se apresenta para nós menos como um tema abstrato e mais na sua capacidade de permanência, na sua capacidade de ressoar hoje. Pensemos, por exemplo, nos vários esforços de modernização de textos que o cineasta realizou. O que filmes como O Vale Abraão, A Carta ou O Principio da Incerteza acabavam por realizar era um jogo onde podemos ver como uma série de elementos contemporâneos se relacionam com um texto do século XVIII ou XIX, e vice-versa. O presente que olhava o passado tanto quanto o passado que olha o presente; e tudo que ganhamos ou perdemos nesta passagem histórica. Uma relação que nunca se apresenta de forma simplificada, até por conta da posição paradoxal de Oliveira (como Jonathan Rosenbaum apontou com precisão certa vez) de ser ao mesmo tempo um homem com uma fortíssima ligação com aristocracia do século XIX, e um grande modernista. Um Filme Falado não retoma nenhum texto antigo, a proposta aqui é outra, mas não deixa de se relacionar com eles. O filme chama-se Um Filme Falado, mas mais do que nunca Oliveira parece estar dialogando com a linguagem de um filme mudo. Fala-se muito em Um Filme Falado, mas dentro da sua simplicidade a câmera de Oliveira parece nos evocar os melhores curtas dos irmãos Lumiere. O que, em si, não se trata de nenhuma novidade, já que parte do que mantém o cinema de Oliveira sempre novo está na sua capacidade de retornar a certas noções de arte (não só de cinema) tidas como datadas, e mostrar o que elas ainda têm para nos dizer – o que não deixa de ser similar ao que ele faz com os textos. Mas a intensidade com que este processo se dá aqui parece nova. Cada plano de Um Filme Falado se apresenta para nós de forma tão simples e direta que acaba por nos deixar desarmados. O que estes planos mostram? Uma mãe (Leonor Silveira, perfeita como sempre) apresentando a filha de 7 anos a uma série de lugares históricos. Ela é professora de História, e também visita estes lugares pela primeira vez. São seqüências aparentemente didáticas, mas só aparentemente: há a história dos livros e a História, e é com isso que estas seqüências todas jogam. O trabalho de Oliveira aqui não deixa de ser, dentro da sua simplicidade, captar a capacidade de cada um destes lugares de reter a História. Eles nos contam mais do que a voz de Silveira, esta sempre a nos lembrar que conhece a História dos livros. São duas coisas diferentes e Oliveira nos lembra disso a cada plano mostrando como estas locações ressoam muito mais, dizem muito mais do que qualquer palavra. Elas são palco da História e a conservaram até o presente. As imagens de Oliveira nos permitem ponderar o que estes lugares (e esta História) ainda têm a nos dizer. Ou, retornando às adaptações literárias de Oliveira, podemos nos perguntar se somos nós que ponderamos sobre estes lugares, ou se são eles que nos contemplam. Todos deveríamos fazer uma viagem como essa. Na impossibilidade, retornemos sempre ao filme de Oliveira. A fala ganha importância muito mais nas cenas onde há troca. Entre Leonor e o pescador, o padre ortodoxo ou Luis Miguel Cintra. Ou na, desde já clássica, seqüência da Torre de Babel. Afinal é esta troca que nos permitirá tirar alguma lição da História. Da fala nasce a possibilidade da reflexão e contextualização da História (e é justamente isso que Oliveira propõe ao longo da parte final do filme). Afinal, é o presente que está em jogo aqui, a tentativa de compreendê-lo a partir de todo uma série de ruínas do velho mundo que embicam no novo mundo. Esforço de compreensão e de transmissão. Esforço de transmissão (de Manoel para todos nós) que ajuda a explicar o final, menos apocalíptico (como a pressa pode sugerir), e mais um esforço de recontextualização, tanto da História quanto do universalismo da seqüência do jantar. Se na maior parte dos filmes que optam por um choque final, acaba por restar só o choque, Um Filme Falado exige que, recuperado o espanto, ponderemos as imagens que vimos. Manoel de Oliveira parte da História para pensar o presente, e apenas gostaria que todos nós fizéssemos o mesmo. Filipe Furtado |
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