Paralelas e Transversais
Segunda-feira ao Sol, de Fernando Leon de Aranoa
Lugares Comuns, de Adolfo Aristarain
Los
lunes al sol, Espanha, 2002
Lugares comunes, Argentina, 2002
O motivo de tratar
estes dois filmes em conjunto fica bem claro na principal aspiração
de seus personagens: em Lugares comuns, personagens desesperançados
com seu futuro econômico e social aspiram ir para a Espanha; enquanto
isso, em Segunda –feira ao sol, vemos os personagens desesperançados
que vivem hoje na Espanha (e que sonham com uma fuga para a Austrália).
Não temos nenhum filme australiano neste momento para comparar,
mas temos certeza que lá também há personagens desesperançados
sonhando com alguma outra "terra de ilusões", e este estado verdadeiramente
globalizado de desencanto e falta de perspectivas é o que liga
os dois filmes entre si e com o mundo de hoje.
No filme de Aranoa,
começamos inclusive com cenas documentais (ou de aparência
documental) de revoltas de trabalhadores contra demissões em massa
nos portos. Partindo deste início que força o contato com
a realidade espanhola atual, vamos seguir um grupo de personagens que
perdem o emprego desta forma na sua rotina de pequenas esperanças
(conseguir um empréstimo, abrir um bar, esperar a volta da mulher),
quase sempre marcadas pela desilusão. É difícil não
gostar de um filme que tome este partido num país do chamado Primeiro
Mundo, ainda mais de um filme que escala no papel principal Javier Bardem,
que é um verdadeiro monstro da atuação e dá
credibilidade a qualquer coisa que se disponha a interpretar. No entanto,
Segunda-feira sofre de um problema grave, a partir de sua estrutura
narrativa: funciona como um programa de variedades com uma série
de pequenas esquetes sobre "ser desempregado". A falta de conexão
direta entre estas esquetes fica clara pela separação destes
por constantes fade-ins e fade-outs. O problema que esta estrutura causa
é que o filme se assemelha mais a uma seqüência de curtas
sobre o tema do que de fato uma narrativa coesa e uma. O que pode funcionar
eventualmente (porque há passagens realmente muito fortes, como
em especial a cena na casa dos ricos, e o diálogo com a criança
de quem Bardem toma conta, e sua reinterpretação da fábula
da cigarra e da formiga), mas que no geral demonstra uma certa covardia
em fabular sobre o tema, em dar aos personagens dimensões outras
que não as de simples "emblemas do desemprego". Escorado por esta
carcaça impenetrável a críticas (afinal, como falar
mal de um filme de relevância social?), Aranoa deixa de lado a força
individual que muitos de seus personagens poderiam ter numa narrativa
mais desenvolvida e que fizesse melhor uso deles. Somente numa cena (num
karaokê), por exemplo, podemos ver os personagens realmente se divertindo
e encontrando alguma forma de alegria, o que pode parecer uma bobagem,
mas retira deles a pecha de simples "desempregados, profissão coragem",
para torná-los humanos individualizados de fato.
Neste sentido, Lugares
comuns acaba sendo bem melhor resolvido, ao assumir que seu filme
(para retomar as idéias de Alberto Cavacanti) não é
sobre os correios e sim sobre uma carta em especial. Ou seja, o professor
forçosamente aposentado interpretado por Federico Luppi (com a
mesma dignidade orgulhosa de Bardem, aliás), e sua família,
mais especificamente sua esposa de anos e anos. Por se recusar a compactuar
com aquilo que não concorda (mesmo motivo pelo qual a companhia
processa o personagem de Bardem), ele se vê retirado do que dava
sentido à sua existência, o ato de ensinar. Neste ponto,
o filme une alguns temas igualmente importantes, no que se diferencia
do filme espanhol: à questão da falta de emprego se somam
o questão da velhice e da utilidade social das pessoas, a crise
argentina como um todo, as relações entre pais e filhos
(e mulher e homem). Dominando com firmeza a chave do melodrama sem cair
no pieguismo diminuidor, Aristarian mostra que o cinema argentino atual
encontrou uma fórmula bastante interessante de criar um cinema
que mistura o contato popular, a reflexão sobre a atualidade e
o gênero do melodrama (como em O Filho da Noiva e Kamchatka,
por exemplo). Filmes, antes de tudo, que misturam a dimensão do
pessoal com a do social de forma muito bem resolvida (ainda que seja verdade
que neste aqui talvez isso se dê um pouco demais através
de diálogos que tomam forma de discursos pouco convincentes como
conversas rotineiras).
É interessantíssimo
quando os personagens vão à Espanha, e o que vemos lá
é uma Espanha completamente diferente da do filme de Aranoa, por
lidar mesmo com espaços completamente distintos e extratos sociais
idem. Ver como o mesmo país que é o sonho de consumo para
uns pode ser o inferno para outros amplia a idéia de uma profunda
cisão entre os que possuem e os que não possuem os meios
econômicos, talvez não tão enorme quanto em nossas
plagas, mas ainda assim igualmente presentes num país como a Espanha.
É um tema que comprova sua universalidade a cada momento, e ficamos
nos perguntando, inclusive, como se daria o encontro dos personagens de
um filme com os do outro.
Segunda-feira
dá um passo bastante interessante no seu final, tornando a união
entre os próximos um ato efetivamente político, com o roubo
da balsa para fazer o "enterro" de um dos personagens. Balsa esta que,
não por acaso, se chama "Lady España". Quando os personagens
tomam a España para si, o filme indica um final, ainda que um tanto
utópico, acima de tudo não conformado. Em Lugares comuns,
a coisa é um pouco mais complicada (até mesmo pela idade
dos personagens), e não se curvar surge como o ato político
individual inicial. Mas, o que ambos realmente afirmam em comum, ao final,
é que se há alguma esperança de vida nestas realidades,
ela parte obrigatoriamente das relações pessoais. Ou seja,
é nos amigos e nos familiares que se encontra o reconhecimento
e o apoio para aquilo que o mundo "prático" nega constantemente.
Humanizar-se cada vez mais como resposta aos descaminhos da ordem sócio-econômica.
O afeto acima do dinheiro e contra a desesperança. São filmes
tristes, mas não entregues. Funcionam mais em momentos do que em
outros, mas traçam um retrato bastante pertinente das relações
pessoais e sociais hoje, e ganham ainda mais se vistos em conjunto, pela
abrangência. Filmes a se ver.
Eduardo Valente
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