A Música Mais Triste do Mundo,
de Guy Maddin
The
saddest music in the world, Canadá, 2003
Se um dos poderes do cinema é o de criar universos com regras e
lógica absolutamente próprios, não há dúvida
de que Guy Maddin é um dos maiores criadores deste tipo de cinema.
Ao tentar penetrar em seu A Música Mais Triste..., o espectador
certamente precisa realizar a operação de deixar de lado
todos os seus pré-conceitos e suas idéias sobre a construção
da ficção no cinema, ou se não deixar de lado, pelo
menos retrabalhá-los. Maddin trabalha num registro absolutamente
pessoal, no qual transforma desde a estética até a lógica
narrativa, passando por todo trabalho com os atores, de forma a criar
um ambiente de cinema que é essencialmente único.
Este ambiente parte
de algumas idéias principais. Primeiro uma relação
com a própria história do cinema, refletida num trabalho
com atores e na imagem cinematográfica mesmo, no qual Maddin busca
uma mistura de registros que se assemelha, mas não copia, alguns
modelos do cinema do início do século passado (até
porque sua história se passa naquele momento, o da Grande Depressão).
O "mas não copia" é detalhe importante, porque não
se trata aqui de uma operação semelhante à de Longe
do Paraíso ou Abaixo o Amor, onde se tenta (de formas
e com objetivos diferentes, é verdade) reproduzir um estilo de
cinema do passado. Maddin busca alguns pontos de contato, mas por outro
lado mexe bastante neste estilo, criando intervenções com
o auxílio da linguagem do vídeo e do digital, passando pela
textura das imagens e também pela superposição destas.
Portanto, seu universo é tanto referencial quanto ao mesmo tempo
anti-mimético destes modelos.
Outra relação
importante do filme é com a própria História do mundo.
Maddin não só parte da idéia de "Grande Depressão"
para criar uma trama que tenha como mote principal um concurso para escolher
a "música mais triste do mundo" (sediado em Winnipeg, que no filme
se auto-intitula "capital mundial da tristeza"), como utiliza-se ainda
de vários outros pontos de contato e releitura, passando do incidente
que dá o estopim para a Primeira Guerra até vários
comentários específicos à História americana,
presentes nos números musicais montados pelo representante dos
EUA no concurso. Em cada uma destas referências, Maddin mistura
o burlesco e a sátira ao comentário histórico mais
direto, criando uma interessante mistura de delírio e realidade.
Neste mesmo campo, ele vai ainda buscar algumas referências cômicas
a partir de costumes e imagens típicas nacionais, relidas e regurgitadas,
a partir desta idéia de um concurso com representações
nacionais. Assim, ele vai brincar com a imagem já cristalizada
das mais diferentes culturas (mexicana, escocesa, africana, espanhola,
etc), criando intervenções de uma dupla de apresentadores
radiofônicos em cima destas imagens, que tornam tudo (geografia,
história) parte de uma mesma lógica de excesso de imagens,
sons, e na qual tudo pode ser relido, satirizado, encaixado na lógica
que rege seu filme.
A partir desta descrição,
é importante talvez comparar o filme de Maddin com o mais recente
trabalho de Peter Greenaway, As Maletas de Tulse Luper, porque
pode-se afirmar sem medo que dividem um bom número de preocupações
como obra. A primeira de todas, sem qualquer dúvida, é esta
reinterpretação do mundo que parte de referências
históricas, geográficas e culturais variadas para criar
um universo absolutamente pessoal calcado, principalmente, nos excessos
maneiristas de representação. Mas, para além disso,
mesmo o tom da aproximação de ambos é parecido, onde
nada é sagrado e tudo pode ser fonte de reorganização
pelo artista, de reutilização dentro dos parâmetros
por ele escolhido. O mundo inteiro, em toda a sua História (mais
particularmente, em ambos os casos, a do século XX), isso é
o que delimita (e, portanto, não delimita) a fonte de material
a ser usado e reusado pelos cineastas - tudo pode ser motivo de uma cena,
de uma piada, de uma referência, de uma leitura. No entanto, aqui
param as semelhanças e se insere a diferença fundamental
entre os dois trabalhos: Maddin parece rir de seu próprio trabalho
constantemente, aceitando para ele um estatuto também de "cinema
pulp" por assim dizer. Leva a sério até o fim sua construção
de universo ficcional, sim (e esta é uma de suas maiores qualidades),
mas sempre rindo e ironizando aquilo mesmo que propõe. Já
Greenaway parece achar no mundo a fonte de suas risadas, mas seu filme
em si não seria passível do mesmo ridículo. Há,
no meio de toda a brincadeira, a solenidade de quem parece propor uma
"nova arte", ou ainda, um modelo diferenciado de entendimento e reordenação
do mundo. Greenaway ri da gente, e não com a gente, como Maddin.
Parece não levar a sério nem mesmo sua própria proposição
de ficção e dramaturgia, colocando-a em questão o
tempo todo, o que leva a um completo distanciamento desinteressado por
parte do espectador ("se ele não acredita nesta história,
porque eu?"). O diretor está acima de tudo: do mundo, de seus personagens,
do espectador. Enquanto, em Maddin, o diretor está junto com sua
história, é parte do mundo, e senta ao lado do espectador,
cutucando-o para dizer: isso não é hilário?
Há muito mais
que se podia discutir no filme de Maddin (como a nada sutil crítica
aos EUA, com o personagem que compra todas as representações
nacionais para compor a sua representação, ou com a idéia
de transformar tristeza e a Depressão em "business"; ou ainda as
relações eventuais que estabelece com gêneros cinematográficos,
em especial o melodrama), mas também deve-se admitir que a mitologia
excessivamente auto-centrada, mesmo que irônica, acaba tornando
o filme bastante pesado e repetitivo em várias passagens. A proposição
de um mundo a ser satirizado tem este problema, sempre - a condução
narrativa precisa ser bem mais fechada do que está em seu filme
para que não tenha de alguma forma este efeito sobre o espectador.
No entanto, seja pela coragem (alguns chamariam, não equivocadamente
aliás, de "cara de pau" mesmo) em levar até as raias do
mau gosto seu filme e seus personagens, seja pela capacidade de criar
um universo audiovisual bastante sedutor, deve-se dizer que Maddin, ainda
mais se comparado com Greenaway, demonstra muito mais méritos do
que defeitos.
Eduardo Valente
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