Migração Alada, de Jacques Perrin
Le Peuple Migrateur, França/Itália/Alemanha/Suíça, 2001

Depois do sucesso internacional que foi Microcosmos, os mesmos produtores franceses descobriram o que o pessoal do Globo Repórter já sabe há muito tempo: colocar bichinho na tela dá o maior ibope (aliás, não por acaso o filme foi parar no Fantástico, quebrado em vinhetinhas curtas). Só que, como esta afirmação mesmo demonstra, restaria saber o que o cinema teria a adicionar a um tema que, por si só, já está mais do que coberto pela TV (só no cabo nacional tem dois canais o dia todo, o Discovery –embora este trate também de outros temas- e o Animal Planet). E é aí que uma das frases nos créditos iniciais deste filme ajudam a entender o caminho decidido: "Não foram usados quaisquer efeitos especiais na filmagem dos vôos dos pássaros". Ou seja: o filme (como já era o caso em Microcosmos) quer impressionar tanto pela beleza das paisagens naturais e dos animais retratados quanto pela sua própria realização. "Mas como é que eles filmaram isso?" parece ser a pergunta que a produção mais deseja ouvir. Sai o maravilhamento das lentes macro com suas imagens do pequeníssimo mundo dos insetos do filme anterior, entra o realmente impressionante vôo das câmeras lado a lado com os pássaros migratórios pelo mundo.

Parece ser principalmente este efeito de maravilhamento constante com o que se vê aquilo que busca o filme. E é inegável que, nas inúmeras vezes em que consegue, não se trata de pouco. Há nesta relação do olhar do espectador com este mundo natural que se revela algo de uma infância perdida do próprio cinema (não por acaso o filme começa com uma criança lidando com os pássaros). Ou seja: apesar de todos os efeitos já mais do que mastigados pelo espectador contemporâneo na sua relação com o audiovisual, ainda existe algo capaz de assemelhá-lo àquele espectador quase virgem (embora muito idealizado, diga-se) que se maravilhava com a entrada do trem na estação ou com as primeiras "vistas". Não é pouco conseguir hoje um olhar técnica ou esteticamente inédito, e esta qualidade deve ser dada ao filme de Perrin.

Mas, além disso, é interessante notar também o tipo de narração escolhido para ser seguido pelo filme, pois trata-se, afinal, de uma outra forma pela qual ele tenta fugir do formato televisivo - onde toda imagem precisa ser contextualizada ou explicada por um texto de um especialista em vida animal. Aqui há sim legendas (que simplesmente informam as distâncias que cada espécie de ave completa) e a eventual entrada do narrador. No entanto, tenta-se manter estas informações no mínimo necessário para o espectador entender o básico do que assiste (localizá-lo geograficamente, etc), sem no entanto a informação prática ganhar premência sobre a informação visual. Aqui, aliás, faz-se necessário um comentário: embora seja o visual que mais sobressaia no filme, e aquilo do que o espectador mais facilmente se lembra, é especialmente bom o trabalho dos editores de som e mixadores do filme, que criam sons diretos onde certamente não havia e mergulham constantemente o espectador nas imagens que assiste. Sem este som, certamente, o efeito do filme seria muito menor, e ele está "escondido" na beleza das imagens, mas merece ser destacado.

Além da opção pela ausência de um narrador onipresente, é interessante também olharmos um pouco mais para a construção da narrativa do filme. Afinal, existe um máximo de imagens de pássaro que se pode olhar na tela por hora e meia. Sabendo muito bem disso, os produtores usam o "golpe" da migração como forma de criar uma progressão dramática no filme, que começa portanto num ponto (a migração para o norte, na primavera) e vai cumprir etapas até outro (a migração de volta, no outono). Esta narrativa é tornada efetivamente circular, voltando nos últimos planos aos mesmos espaços do seu início. Inclusive com o golpe de linguagem de pegar uma situação "dramática" claramente ficcional (a criança soltando um pássaro preso por uma rede) para fechar a história (o mesmo pássaro volta no final, reconhecível pelo resquício de rede preso em seu pé). Esta preocupação narrativa é uma interesse constante no filme, mas não é seu único golpe de contato com o espectador. Há, em todos estes documentários sobre animais, um outro sutil movimento de reconhecimento do espectador com o que assiste: o de buscar "humanidade" nos animais. Assim, como se o reino animal não tivesse validade por si, há que se humanizar alguns animais para que se tornem "interessantes" – no que vemos tantas generalizações como em qualquer filme hollywoodiano, aliás: um passarinho de asa quebrada cercado por siris é tornando uma triste vítima indefesa pela qual "torcemos", enquanto minhocas são deglutidas pelos pássaros sem se tornar uma crueldade em si. Alguns animais são mais iguais do que os outros...

O que nos leva a um ponto interessante, aliás, que é a presença humana no filme. Os homens que surgem no filme são invariavelmente de dois tipos: os que representam uma idealização da vida em contato com a natureza (exemplificados pela criança já citada e por uma velha senhora que alimenta os pássaros numa bucólica paisagem rural), e os que são uma ameaça a ela. Estes aparecem especificamente na figura de caçadores que abatem os pássaros em sua migração, mas também aparecem representados por criações humanas: as passagens dos pássaros por grandes centros urbanos (inclusive uma Nova York ainda com torres gêmeas) ou a dificuldade destes de lidar com detritos industriais. É no contexto deste batido discurso "ecologista" que chega uma parte que nos interessa diretamente. Quando os pássaros já estão de volta à Europa, ao fim da migração, um repentino corte nos leva para a selva, e aparece a legenda: "The Amazon", enquanto surgem araras e papagaios coloridos. A dúvida é imediata: mas, afinal, araras e papagaios migram? Nos damos logo conta que não é este o interesse da seqüência: após breves planos, surge um barco que trafega pelo Rio Amazonas. Vamos nos aproximando e vemos inúmeras gaiolas com pássaros silvestres presos. Logo, vemos também gaiolas com macacos (!!!), dos quais a câmera se aproxima conseguindo expressões bem mais humanas ainda (porque será?) de sofrimento e aprisionamento. Uma esperta arara consegue se soltar, e voa para a liberdade. Corta de volta para a Europa e retomamos a questão da migração. Esta deplorável inserção de um comentário completamente despropositado (não pela validade ou não, mas por não ter nada a ver com o filme que se via até então ou depois disso) sobre a Amazônia demonstra o esperado: como expressão política, Migração Alada é uma bela nulidade, óbvio e tendencioso. Tentemos então esquecer estas tentativas, e fiquemos com a absurda competência no quesito técnico e de filmagem da natureza. Melhor cada coisa ficar no seu lugar, que nem a Amazônia.

Eduardo Valente