Cidadão Kane, por Erich von Stroheim


A crítica de Cidadão Kane, escrita por Erich von Stroheim, será reproduzida a seguir em sua íntegra e sem quaisquer correções. Foi publicada pela primeira vez em um periódico sobre artes intitulado "DECISION: a review of free culture," fundado e editado por Klaus Mann, como parte de uma reação à ocupação de uma grande extensão do território europeu pelos nazistas. A crítica apareceu no Volume 1, Número 6, Junho de 1941, pag. 91-93; a publicaçào durou apenas onze edições. Foi por mim obtida através de imagens digitais de suas páginas, enviadas por um negociante de periódicos raros que achou que ela seria de meu interesse. Richard Koszarski, um especialista em Erich von Stroheim, me escreveu dizendo que "ela é bastante ilustrativa e que ele havia escrito um outro artigo para a mesma publicação sobre a censura no cinema; mas ambos os ensaios seriam acima de tudo sobre ele próprio." Por considerá-lo um texto de muito difícil acesso, coloco-a então disponível aqui. (Fred Camper)

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Esta talvez seja a primeira crítica sobre um filme escrita por um cineasta que, coincidentemente, também em sua época – assim como Orson Welles – exerceu as funções consideradas como a "Santíssima Trindade." Em nosso caso, a "trindade" significa que as funções de roteirista, diretor e astro são combinadas em uma única pessoa. O homem que executa estes três ofícios tem, em todos os casos, um trabalho gigantesco em suas mãos e que só pode ser devidamente avaliado por alguém que tenha tentado fazer o mesmo. De fato, Orson Welles ainda me superou em um aspecto, pois foi também o produtor. E o produtor Welles permitiu sem reclamar que o diretor Welles executasse o que o roteirista Welles planejou fazer. E o diretor Welles deixou que o ator Welles atuasse como bem desejasse.

Uma vez que o homem que exerce a "Santíssima Trindade" recebe os aplausos praticamente sozinho – pressupondo que o produto final possua os seus méritos –, da mesma forma somente ele leva a culpa caso um ou mais de seus empreendimentos não alcancem os resultados desejados.

No caso de Cidadão Kane, Welles deve levar a culpa pelas deficiências da "história" e Herman G. Mankiewicz pode também receber uma boa parte dessa culpa. Se Mankiewicz escreveu o roteiro original, como afirma o material de publicidade, então Welles é culpado por não exigir alterações e a inclusão de sequências suplementares, assim como a supressão de momentos repetitivos. Caso suas objeções não tenham sido aceitas, ele merece a culpa por não haver insistido nessas mudanças. O release publicitário conta que Welles rodou o filme sem um script durante uma semana ou pouco mais. Um diretor não pode trabalhar desta forma por mais tempo e isso talvez tenha relação com as evidentes falhas de continuidade.

Criticar um filme é indiscutivelmente uma tarefa árdua. De um modo geral, a maioria dos críticos simplesmente declaram sua opinião a respeito do filme ser bom, ruim ou mediano, mas não possuem um conhecimento específico sobre o que torna um filme bom ou mau. Pode ser que o roteiro ou apenas a continuidade apresentem erros. Pode ser a direção ou as atuações. Muitas vezes o diretor leva a culpa por um mau roteiro ou continuidade, embora ele nada tivesse a ver com estes, tendo feito o melhor possível com o material que chegou às suas mãos. Atores são responsabilizados por uma performance insatisfatória quando de fato fizeram apenas aquilo que foram orientados pelo diretor. Embora Welles tenha exercido ele mesmo todas estas funções, ao criticarmos seu trabalho devemos apontar de forma específica onde ele falhou.

Eu devo começar (ao contrário da técnica utilizada por Welles) pelo princípio, com um elemento básico de um filme – o argumento. E muito há que ser criticado no argumento de Cidadão Kane. Este não possui grandeza ou vitalidade suficientes para justificar o tremendo volume de trabalho, tempo e dinheiro a ele dispensados, e que podem ser reconhecidos mesmo por um leigo. É apenar mais uma história sobre um homem super-ambicioso; nesse caso em particular, um editor de jornais, que casualmente aspira tornar-se governador. Um homem que construiu um vasto império jornalístico apenas para vê-lo desmantelar-se. Um homem que coleciona toda sorte de objetos provenientes dos quatro cantos do mundo, mas não manifesta o menor interesse pelas coisas que coleciona. Um homem que deixa sua esposa e filho apenas para, no fim das contas, ser abandonado pela mulher pela qual os deixou. De certo modo, no início ele ainda possui seus ideais, mas não tem o caráter necessário para mantê-los ao longo da vida. O cidadão Kane se importa realmente com três coisas apenas: Kane, KANE e K A N E!

Não há nada de particularmente novo em tudo isso. Aconteceu milhares de vezes na vida real e foi assunto de inúmeros filmes. E o mesmo erro dos filmes anteriores se repetiu. Uma análise detalhada e microscópica do coração e da alma de Kane ficou esquecida.

Nenhum homem é tão completamente egoísta e inflexível de forma que não possamos encontrar um traço redentor em suas motivações, atitudes e reações. Exceto pelo incidente singularmente belo de “Rosebud”, o nome do trenó que possuia em sua infância e que ele balbucia antes de morrer, não existe no filme um detalhe que tenda a fazer de Kane uma figura humana e digna de compreensão. Para tornar a ambição insaciável de um homem, seu egoísmo cruel e sua rudeza compreensíveis e interessantes, deveria ser apresentada uma motivação visível para que ele houvesse se transformado nesse monstro.

A bem da verdade, durante os primeiros vinte minutos do filme, eu, que estou há trinta anos no negócio de fazer cinema, não connseguia saber sobre o que ele se tratava. Eu posso ser tapado, mas conversei com pelo menos cinquenta pessoas que, de forma mais ou menos articulada, descreveram ter passado pela mesma experiência. Eu posso ser hiper-conservador ou puramente saudosista, mas acredito sinceramente que a forma pela qual a história de Cidadão Kane é contada não é a maneira mais desejável ou bem-sucedida de se narrar uma história em cinema. Todos nós estamos acostumados a ouvir e ver uma história a partir de seu princípio. A maneira como Welles conta sua história pode ter seu lugar na literatura ou no palco, mas estou convencido que, em cinema, encontra-se totalmente deslocada.

É claro que eu compreendo que, tendo sido Kane um editor de jornais, Welles tratou sua morte através de um ângulo jornalístico, usando flashes curtos e fragmentados. Não faço objeção a isso, mas sim ao fato do filme começar com a morte de Kane. Longe de mim querer reescrever o roteiro, mas acredito que este pudesse ter sido organizado de forma que a morte de Kane pudesse ser apresentada da maneira tradicional – no final. O sacrifício da simplicidade em prol da excentricidade rouba do filme seu valor de entretenimento comum. Além das críticas sobre as limitações do argumento e as opções radicais na forma de contá-lo, nada tenho a fazer senão cantar os mais altos louvores pelo filme. A produção como um todo pode somente ser classificada como soberba. A direção – posso dizer aqui que apenas os iniciados irão um dia entender o quanto de trabalho e responsabilidade estão implícitos no termo “direção” – é simplesmente genial; exceto por permitir que Erskin Sandford se pareça com um personagem de Dickens.

Além do próprio Welles, os méritos na atuação vão para Everest Sloane como "Bernstein", magnífico em sua simplicidade humana, Joseph Cotton como "Jedediah Leland" está excelente, exceto pelo “bigode” branco que o maquiador se permitiu grudar em seu lábio superior durante a sequência do sanatório. Ele mais parece um sargento de artilharia num retiro para soldados veteranos do que o idealista que deveria estar sendo retratado. Ruth Warrick, como a esposa, tem uma atuação digna de tal, de forma a justificar de algum modo o fato de seu marido abandoná-la. Dorothy Comingore como a namorada “cantora” está muito bem em diversas cenas, bastante tocante em sua vulgaridade. O resto do elenco, todos intérpretes da companhia Mercury, os quais eu nunca havia visto antes na tela, têm interpretações esplêndidas. A cenografia de Van Nest Polglase nunca desvia a atenção. Os cenários do castelo são magníficos, e tão realistas que por vezes me perguntei se estes haviam sido realmente construídos para o filme ou se o castelo de Hearst, em Saint Simon, havia sido utilizado de fato. A iluminação e a fotografia merecem os maiores elogios. Elas provam uma velha opinião minha sobre o fato de que, mesmo em filmes sonoros, podemos fazer uso de uma fotografia bonita e artística, que complementa e acentua a narrativa, o que desde o advento do cinema sonoro vem sendo tão vergonhosamente negligenciado. Naturalmente existem alguns ignorantes (incluindo alguns críticos de cinema) que classificaram a fotografia como sombria e assustadora. O problema é que eles vem sendo tão empanturrados de fotografia medíocre desde o fim do cinema mudo que passaram a acreditar que a fotografia precisa ser medíocre. Tiro meu chapéu com a maior reverência para Gregg Toland and Vernon L. Walker, A.S.C. O som neste filme é aquilo que o som deveria ser.

O “veneno” que Louella Parsons destilou por todo o país sobre o fato de que Cidadão Kane seria supostamente uma biografia mais ou menos autêntica do cidadão William Randolf Hearst e sua suposta objeção à exibição do filme, a suposta tentativa de alguns produtores de Hollywood arecadarem vastas somas em dinheiro para cobrir os gastos da R.K.O. para que a companhia declinasse em lançar o filme, as supostas objeções levantadas e as restrições impostas pelo código Hayes... para mim tudo isso parece decididamente “suspeito”. E mais, eu e muitas outras pessoas com quem conversei acreditamos que esta foi uma campanha promocional bastante esperta, saída da mente fértil do cidadão Welles, que, na minha opinião, seria um diretor de publicidade tão talentoso quanto o diretor de cinema que ele provou ser com este filme. Qualquer que seja a verdade a seu respeito, Cidadão Kane é um grande filme que permanecerá ao longo da história do cinema. Mais poder para Welles!

Erich von Stroheim

Tradução de Gilberto Silva Jr.
(O texto original – em inglês – está disponível no site oficial do crítico Fred Camper)