Ismail Xavier e Jean-Claude Bernardet


Na noite de 15 de agosto, no Centro Cultural São Paulo, abarrotado, os professores/críticos Ismail Xavier e Jean-Claude Bernardet debateram, com mediação do também professor Carlos Augusto Calil, diretor do CCSP, o documentário brasileiro contemporâneo, com ênfase na utilização da palavra e das entrevistas nos filmes. Completou a mesa o diretor e jornalista Evaldo Mocarzel, cujo filme À Margem da Imagem é um dos mais premiados documentários dos últimos anos, tanto na versão curta como na versão longa. O choque de idéias foi motivado pela reedição, com ensaios adicionais, de Cineastas e Imagens do Povo, de Bernardet, publicado originalmente em 1985. Contracampo gravou o debate e, com a gentil autorização de Carlos Augusto Calil, publica um resumo das exposições. Como nosso interesse era específico, transcrevemos apenas as participações de Ismail e Jean Claude; mesmo assim, por problemas técnicos, com omissões de um ou outro trecho.

Jean-Claude Bernardet: O tema do debate não é exatamente o documentário em geral, mas a questão do verbal no documentário, em especial a questão da entrevista como recurso e linguagem no cinema brasileiro atual. Colocarei algumas questões. Fui assistente de direção de um filme de Chico Teixeira sobre gêmeos, Carrega Comigo, quase inteiramente baseado em entrevistas e, consequentemente, comecei a pensar a esse respeito. Também fui provocado por uma manifestação do Ismail (Xavier), no Itaú Cultural, em que Ismail perguntava ao (Eduardo) Coutinho: "mas que escuta é essa que não é de um tribunal, de uma sessão de psicánalise?". Pelo que lembro, não houve resposta. Coutinho adotou uma atitude que Ismail classificou de minimalista, e isso com gentileza. Também fui motivado pelo filme do Evaldo (Mocarzel), que me parece muito contraditório, mas extremamente rico, revelador de todas as qualidades e problemas que esse método de entrevista pode oferecer. Vou levantar em função disso alguns pontos. Tradicionalmente, a entrevista possibilita que se passe a palavra ao outro, ou seja, àquele que não tem fala, não tem lugar para falar, não tem como emitir seu discurso. É um argumento antigo, dos anos 50 e 60, mas sobre ele faço algumas perguntas. Que fala do outro é essa, se é sempre motivada pelas perguntas do cineasta? Não é uma fala que tem iniciativa da sua fala, não se coloca onde quer se colocar, mas motivada por uma situação que não é criada e controlada pelo outro. É um ponto problemático a se discutir. Além disso, o outro só fala sobre temas propostos por perguntas, não sobre o que gostaria de falar. E esse outro a quem se dá a fala perde o controle sobre a fala na montagem. Um outro ponto discutível e muito levantado, principalmente a partir do cinema do Coutinho e de filmes como Janela da Alma, é a questão da intimidade e aproximação com pessoas filmadas. Mas que intimidade é essa que ocorreria nas entrevistas? Nas entrevistas, as pessoas só podem dizer o que é verbalizado. Não tem nada que possam fazer além do que é verbalizável, a não ser alguns movimentos de cabeça, olhares e expressões; no entanto, o essencial se concentra no verbalizável. E além do mais, o que as pessoas podem verbalizar? Tenho dúvidas se o recurso hegemônico das entrevistas possibilita essa aproximação, este chegar à pessoa, a uma certa intuição da pessoa filmada, com o predomínio do verbalizável. O Nelson Freire, filme do João Moreira Salles, ensina muita coisa sobre a entrevista pelo fato de ter trabalhado com uma pessoa extremamente tímida, que não consegue encadear três frases. É uma sorte que Nelson Freire não consiga falar. Tem um momento que me marcou que é o do Nelson Freire ouvindo disco da Guiomar Novaes. Ele não fala dela. Não verbaliza o que ele sente, o que ele acha da técnica, da interpretação da Guiomar Novaes. Mas há no rosto dele um sorriso, um encantamento, um maravilhamento, que achamos que ali chegamos mais perto de intuir o prazer dele pela interpretação da Guimar Novaes. Mais que se ele nos dissesse. Nesse momento, há maior aproximação em relação à pessoa filmada do que ocorre em geral com o sistema de palavras. Outro ponto que quero levantar é sobre a concentração do documentarista sobre as entrevistas, que enfraquece outras formas de aproximação do outro e empobrece a observação, porque o documentarista se concentra na entrevista e ignora uma série de outros elementos que seriam ricos para compreender determinadas pessoas filmadas. No release de À Margem da Imagem, lê-se o seguinte: "o documentário mostra o cotidiano dos sem-teto". No entanto, pergunto: como aparece essa cotidianidade? Ela é predominantemente presente nas palavras dos entrevistados e não na observação do documentarista. E curiosamente essa cotidianidade é presente em uma situação que não é cotidiana, que é os sem-teto dando entrevistas. Em volta da entrevista há elementos, como a roupa deles, alguns objetos; no entanto, a vivênvia cotidiana está enfraquecida por esse poder da entrevista. Há outros problemas que se tem de colocar. A entrevista custa mais barato que outras formas de produção de documentário. Ela é mais rápida, exige menos tempo, mais fácil de conduzir do que a observação, que te leva a seguir pessoas, com uma certa incerteza no que pode acontecer. Mas a entrevista elimina uma série de possibilidades narrativas e dramáticas. O último ponto que levanto é que a entrevista privilegia o entrevistador, que tem uma posição central mesmo que ele não esteja presente na tela, como em geral não está, mas é ele que estimula a fala do entrevistado e é a ele que se dirigem as respostas e o olhar do entrevistado. Isso gera uma disposição sonora e espacial voltada para esse ponto fora da câmera. Há uma triangulação entre o entrevistado, a câmera e o entrevistador, com o entrevistador sendo o ponto de imantação do olhar do entrevistado e da direção das suas palavras. Isso tem uma consequência grande. Ao privilegiar relações entre entrevistado e entrevistador, esse documentário acaba desprezando as relações entre as pessoas filmadas. Em diversos filmes, com pessoas que dividem a mesma casa, as entrevistas são feitas separadamente, mas a interação possível entre eles não ocorre. Isso, em relação a filmes de décadas passadas é uma grande perda. Para concluir, cito mais uma cena do Nelson Freire, que é a relação dele com uma amiga. É uma relação em que percebemos que eles entram em relação pela interação e não pela entrevista. A música é que os une. E chega-se a uma intuição de intimidade entre eles quando ela pergunta a ele como se limpa o piano. É uma verdadeira surpresa. Eles se comunicam pela música. No sistema de entrevistas, essa relação não conseguiria ser construída. Como colocação inicial é isso.

Ismail Xavier: Vou retomar algumas questões e fazer outras aproximações. Toda minha fala será sobre a expressão oral. A oralidade pura do documentário é a do narrador, que não aparecia, e a gente tinha apenas a voz inscrita em determinado protocolo, com outro tipo de postura, pois essa voz se assumia como sujeito. Mas a questão da oralidade que vou discutir está ligada à constituição do que chamarei de cena. Entrevista é cena. Há cortes dentro dela, e cada vez se quebra mais a continuidade; inclusive, a televisão ajudou a criar um certo tipo de corte e hoje está muito hábil a forma com que se corta, mas de qualquer forma podemos admitir uma unidade de espaço, onde é constituída uma cena. Esta cena tem pressões ligadas a um poder que está concentrado em quem faz o filme. Há uma assimetria, embora haja esforço de torná-la simétrica, embora também haja esforços para tematizar a assimetria. Caso típico disso é o filme do Evaldo Mocarzel (À Margem da Imagem), que está preocupado em explicitar as assimetrias do jogo de poder entre o aparato do cinema e as pessoas mobilizadas para contar suas histórias. Tem a montagem, uma ordenação feita pelo cineasta, uma série de recursos, mas me preocuparei com a cena, onde temos uma câmera, um diretor e um entrevistado. Como temas, uma imagem, uma das coisas que se percebe quando há interesse em dar espaço para o entrevistado é a duração. Nas entrevistas, principalmente no caso do Coutinho que é um paradigma da concentração do método da entrevista, há um processo pelo qual pela duração tenta-se estabelecer uma forma de o entrevistado poder ter chance de assumir um certo comando, pautar, mudar de assunto, divagar. Um dos exemplos que poderia dar é aquela senhora em Santo Forte, aquela que mais fala, que impressiona pela inversão de perguntas, que tem estratégia de colocar as coisas com muita segurança. Ela é quem domina o tempo da cena. Nessa ênfase na duração da entrevista, dá-se mais espaço para a dicção, para a fisionomia do rosto, do corpo, e isso poderia estar ligado a aspectos gerais de como se entende o papel da câmera no cinema. Houve um processo nos anos 60, com esse vocabulário existencialista para se colocar a questão da relação do olhar da câmera com o ator e a idéia de privilegiar o instante e o improviso, de estabeceler tensões que, na ausência de uma programação rígida do que vai acontecer, pudesse estabeceler a inserção do acaso e dos momentos de verdade na relação entre câmera e ator, e isso tem a ver com essa nossa questão do entrevistador e da entrevistado. Pela postura corporal, poderíamos observar coisas que o entrevistado, inadvertidamente, deixa passar. Há uma certa fenomenologia nessa idéia de uma câmera capaz de captar determinadas coisas que são efêmeras, momentos fugidios, não programados. Coutinho tem feito esse tipo de esforço. Vou trabalhar aqui com o vocabulário teatral. Vou levar ao limite que se trata de performance, de um desafio que faça com que o entrevistado atue. A câmera escondida, usada na televisão de forma caricata e banalizada pelas pegadinhas; por conta dessa banalização, é difícil encontrar essa câmera escondida hoje. Isso faz parte do documentário brasileiro, que montou um código de ética não-escrito, mas evidente no método. Há uma crítica aos documentários do passado, que filmaram pessoas em condições de vida adversas, colocadas em condição inconveniente. Essa idéia de que o sujeito colocado em frente à câmera tem de ser retirado da condição de representação de categoria social, de grupo em desvantagem, com carência contundente, leva essa figura a jamais ser colocada de modo que seja transformada em objeto. É preciso, hoje, que o sujeito saiba que está sendo filmado e ele está ali enquanto indivíduo que está jogando com o cineasta. Há essa tendência nos filmes de Coutinho... À medida que saímos de Santo Forte e chegamos a Edifício Master, vemos que há menos assuntos exteriores às pessoas em pauta. Embora esses métodos sejam semelhantes, no caso do Santo Forte tem um assunto que pauta as entrevistas. No Babilônia 2000 é mais frouxo, seguia uma pergunta vaga, "como você está vendo a passagem do milênio?", mas havia uma comunidade que se sentia estranhada com a presença do cineasta e, ao mesmo tempo, essa comunidade tinha em cada uma das pessoas entrevistadas uma atitude de combate ao estereótipo, como se dissessem "estamos aqui para mostrar que não somos aquilo que pensam que somos, estamos aqui para aproveitar uma chance de fala pública" e essa fala é uma negociação entre o filme e o entrevistado. Isso também acontece no filme do Evaldo. São pessoas que estão em situação-limite, que são trabalhadas dentro do código de ética, mas tem toda consciência da situação de filmagem. Nesse sentido, há uma forma pela qual existe possibilidade de reversão, apesar do controle do cineasta. Isso se dá nitidamente em vários momentos, até aquela entrevista no final, quando o entrevistado toma o poder. Mas o mais importante é o fato de que nesse esforço de evitar que o entrevistado se transforme em representante de uma categoria há uma busca de algo exclusivo dele em sua experiência pessoal e de suas formas de construção de seu cotidiano. A relação de conflito e cumplicidade entre o filme e o entrevistado é no sentido de fazer com que apareçam particularidades que não são as mais óbvias e as mais esperadas. Quando a entrevista está na montagem, que inclui outra forma de interagir com o universo a ser colocado na tela, é o momento em que o documentário assume-se como forma dramática, mas pode estar inserido em uma situação pela qual vai conviver com o tom expositivo, às vezes com certa lógica, uma lógica difícil de ser trabalhada. A entrevista tem prestígio porque é forma dramática, que é a forma por excelência do sucesso, forma de despertar interesse, seja na tevê ou no cinema. Ela está nos talk shows, que viraram indústria de confissão pública. E tem uma forma dramática ainda mais caricata que são os programas onde as pessoas vão resolver problemas, potencializado pelo controlador do programa. Nessa forma dramática, há uso constante por documentaristas da noção de personagem. Acho sintomático. Por que o entrevistador faz questão de dizer que o entrevistado é um personagem? Ou seja: eles introduzem um vocabulário da forma dramática. Não sou eu que estou impondo o teatro ao documentário. Há uma possibilidade de fazer paralelo entre a forma dramática e o que o documentário tem de especial na contemporaneidade e no que ele difere das formas mais clássicas. Desde a Poética do Aristóteles, a personagem tem um ponto crítico fundamental que é a ação. Ou seja: por mais que a forma dramática se construa por relações entre personagens e pelos diálogos, é preciso que haja a definição do destino, que haja percurso, que haja conflitos e esses conflitos são internos às personagens. O que a personagem diz é importante porque o falar é uma forma de agir, mas o que define personagens dentro de uma tradição é aquilo que as colocam em conflito de vontades, interesses, idéias e situações que se decidem no plano da ação. Essa questão, no documentário baseado em entrevistas, fica isolada. A gente tem a sua própria narração em relação ao seu passado, ela se constrói narrando a própria história e ela se constrói na atitude que ela tem diante de câmera e entrevistador. Isso define o material que a gente tem para tentar construir a idéia de personagem para aquela figura. O ponto de conflito e de ação é a negociação entre (a personagem), o diretor e a câmera. Existe a interação entre o lado exibicionista da situação da cena no documentário, em que a pessoa é convidada a fazer uma performance diante de um olhar e conversar com o olhar do diretor, mas ao mesmo tempo existe respeito muito grande pela quarta parede quando se trata da câmera. São muitos raros os momentos em que o entrevistado olha para a câmera e conversa com um outro olhar que ali está. Não sei se é por iniciativa própria ou se porque o diretor assim definiu, e se definiu existe uma direção de ator na ficção. É curioso que ao mesmo tempo em que o entrevistado faz sua performance sem olhar para a câmera é claro que ele está fazendo tudo para a câmera. Ele veste o personagem e, para vesti-lo, faz parte do jogo que não olhe para a câmera. E o entrevistado, para se transformar em personagem, tem de obedecer essa regra. O que quero lembrar é que se a gente trabalhar o documentário de forma dramática teremos situações as mais diversas. Se vocês pegarem um filme como Ônibus 174, o protagonista, Sandro, que assaltou o ônibus e a coisa se desdobrou na complexa tarde no Jardim Botânico, lá é o personagem que se cria no filme, porque o filme cria um personagem, seguindo um modelo clássico. Tem a cena inicial e o retrospecto. É o destino que define o pacto. Nossa relação diante daquela figura é dada pelo percurso dele e pelo final, que é o momento de sua morte. O filme tem estrutura dramática emprestada de uma forma dramática clássica de ficção. Lembra até o Cidadão Kane. E ao mesmo tempo tem o momento presente, o do ônibus, em que a fala não é outorgada, porque é uma fala construída pela situação que ele definiu. Ele sabe que a televisão está lá e dá uma coletiva. Ele chama a imprensa, que ele determina quando, onde e como. Acho o filme muito contraditório e muito cheio de problemas no momento em que ele assume o suspense e uma série de estruturas do cinema clássico. Mas voltando à questão do Coutinho, afinal, o que acontece nesse teatrinho montado? Não é no sentido pejorativo. Há uma série de aspectos que podem ser discutidos, que é como cada cineasta lida com essa negociação. Eu tenho muito apreço pelo Coutinho quando ele monta a cena. Há pressupostos nesse tipo de cinema que tem a ver com cumplicidade, com, pelo menos, e da maneira mais efêmera possível, criar a noção do "nós", nós que partilhamos essa situação, esse encontro, que pode ter os mais diversos horizontes, mas é visto pelos cineastas e pelos entrevistados segundo pontos de vista que podem ser opostos, como fica explicitado aqui no caso do À Margem da Imagem, que define uma situação efêmera, não uma situação cotidiana, em que alguém recebe uma visita e terá uma situação ao mesmo tempo gratificante, pois um espaço lhe é dado, mas também é um desafio e um risco. Por isso é dramático, porque o entrevistado assume a gratificação dessa atenção que hoje é uma brincadeira, ter seus 15 minutos de fama, ter sua possibilidade de se ver como imagem, mas por outro lado tem o desafio e o risco, em uma situação que podemos chamar de agônica, de conflito, de competição e de imprevisível com relação ao desenlace. O que quero chamar atenção em relação ao Coutinho, em relação à pergunta "que escuta é essa que o cineasta tem?", é que, na medida em que os filmes vão ficando com o assunto a respeito do qual tem de se falar mais vago, a tendência é que nesse vazio, maior espaço se dê para as personagens falarem de si próprias. No caso de À Margem da Imagem, como tem uma questão contundente que costura a escolha dos entrevistados, é claro que o assunto está muito presente, mas há espaço para que as personagens se revelem, para que as pessoas façam seu próprio teatro diante da câmera, coisa que, no Edifício Master, estar ali sendo entrevistado porque mora naquele prédio não é a mesma coisa que estar sendo entrevistado porque mora na rua. As pessoas do edifício são pessoas que tem histórias que talvez sejam vistas como dotadas de pouca contundência se examinadas do ponto de vista social de que tradicionalmente trata um certo tipo do documentário. A idéia é a emergência do sujeito a quem vai se dar um espaço para ele ter sua performance. Agora, essa performance é diante de quem? Não se trata de um tribunal em que se está prestando depoimento sob juramento. Não é uma delegacia, não está sendo interrogado. Não é a figura do pai. Pode ser no sentido simbólico, mas não no sentido estrito. Não é o patrão e falo do patrão porque aquela moça que dá entrevista olhando de lado comenta sobre as dificuldades que ela tem de olhar para o Coutinho, e o Coutinho, em um determinado momento, pergunta porque ela não olha para ele e ela diz: "tenho dificuldade e estou em uma situação em que não estou fazendo entrevista para emprego, porque se estivesse, eu olharia sim para meu entrevistador porque senão não conseguiria emprego, mas você não é alguem que vai me dar emprego, portanto tenho uma situação que é diferente e posso me dar o direito de ser um pouquinho eu mesma". Também não é uma situação de terapia, porque o entrevistado não procurou e não supõe que o cineasta tenha uma técnica e um saber vinculados a uma idéia que uma pessoa pobre tem mais ou menos do que seja uma terapia, e é uma situação pública porque a câmera publiciza aquela cena, a câmera nos lembra que estamos em espaço público, mesmo estando na casa da pessoa. E esse olhar público implica na noção de decoro, qualquer que seja a noção que se tenha de decoro, mas existe a noção de que muitas coisas têm de ficar fora da cena. Existe o obsceno e a consciência dele, que é o que faz que muita gente critique a televisão, é aquilo que o cinesta carrega dentro de si também. O cineasta também carrega para a conversa o decoro porque sabe que é uma situação pública, sui generis. O que é fundamental é que as pessoas têm determinado tipo de reação e já faz muito tempo que a crítica cinematográfica tematiza a questão do efeito-câmera, da capacidade que existe nessas situações de se extrair coisas das pessoas. Elas falam coisas que não falariam até em situação sem aparato técnico. Acho que o motivo que as leva a ter comportamento mais extrovertido tem a ver com esse carater público e o tipo de expectativa do que significa isso. Não está claro para mim não. Só para terminar, quando digo que o documentarista aposta na entrevista como método revelador ele está tendo uma concepção do sujeito que é muito moderna, de que há um processo complexo de constituição da subjetividade que define determinado tipo de interação que pode ser muito particular em certos momentos e que leva a esse esforço de auto-construção. É a criação de uma personagem, e se existe essa idéia podemos atribuí-la à própria maneira como o entrevistado, diante do olhar público, constrói, por narração, atitude e performance, uma imagem de si; expõe-se naquilo que ele supostamente julga ser mais interessante para quem está vendo e ouvindo. O Roland Barthes diz que, diante de um retrato, a gente cria uma ficção de si mesmo. Essa idéia de construir-se diante de um olhar tem um peso hoje porque aqueles descartes todos são feitos. Descarto a idéia de que vou entrevistar porque o sujeito tem um saber que me interessa, eu descarto a idéia de que vou entrevistar porque ele é representante de uma categoria social, descarto a idéia de que vou entrevistar porque ele pode ilustrar algo que o ultrapassa e eu tenho de dar todo o espaço para ele se manifestar em toda sua particularidade. Estou dando um recuo e criando um vazio para ele construir uma personagem para sua autoexposição diante do olhar público. É curioso que isso aconteça de uma forma que é consciente por parte do entrevistado. O momento mais emblemático dessa situação é quando a Alexandra, no Edifício Master, aquela jovem que, segundo o nome que se dá à profissão, é garota de programa; quando ela é entrevistada, ela, figura carismática e sedutora, depois de falar das mentiras que tinha contado antes para o Coutinho, vários comentários em que ela vê com clareza esse espaço de ambiguidade que se cria na relação com o olhar público... tem uma hora em que ela diz, em dimensão confessional e pública, que ela é uma mentirosa verdadeira. Não sou bom ator, não consigo reproduzir a riqueza do comportamento dela diante da câmera... mas ela diz que quando está dizendo a verdade está mentindo e quando está mentindo está sendo verdadeira. A contradição reconhecida e a complexidade da idéia do eu, relação do eu com o outro e os desdobramentos da subjetividade, e as fissuras do sujeito aparecem em uma conversa nessa situação criada. Existe todo um movimento em nome da verdade, mas acho que a procura do dramático é um processo de sedução. O documentário quer seduzir, e não digo que é um problema, mas a dimensão estética envolvida nessa criação de personagem, que é inclusive uma dimensão assumida, que sabe que o olhar da câmera espera que ela seja uma personalidade, aquilo que tenha interesse, que desperte senso estético de prazer que não é apenas a seca idéia de verdade, isso faz parte desse cinema apoiado na entrevista. Quando ele vai ao limite, como Coutinho está tentando ir, tem uma concepção do sujeito, que se supõe que traga para si a responsabilidade de fazer com que os sujeitos apareçam. Já que na vida social isso não se dá, porque se o problema é autoconstrução e a questão é essa interação em que eu vou ter uma performance, e não é o problema da ação e do destino, eu vou ter efetivamente um tipo de forma dramática muito moderna porque ela se dá no momento em que o conflito se interioriza, a formação do sujeito diante da câmera, como se todo mundo tivesse o ideal de ser entrevistado e se mostrasse um Hamlet. É a idéia: eu sou complexo e preciso expor minha complexidade, uma idéia do século XVI e XVII, onde alguns historiadores acham que nasce o homem moderno

Jean-Claude Bernardet: Quero pegar alguns pontos entre muitos problemas levantados pelos documentários. Um deles é a questão da alteridade. Tenho uma divergência ao uso dessa palavra porque essa alteridade é sempre do outro, mas ele só é outro quando nós somos nós. Há uma contemplação em relação à alteridade do outro que se revela nas atitudes cerimoniosas com que os povos estão sendo tratados. A partir do momento em que o documentarista for capaz de não tratar de forma cerimoniosa um favelado, aí a alteridade aparecerá porque a alteridade se dá em uma relação, e não em uma contemplação de um suposto sujeito que não pode se colocar como sujeito. Há um exemplo que posso dar, que é do Casa de Cachorro, do Thiago Villas Boas. Ele pergunta para um dos entrevistados onde fica a casa dele. O homem estica o braço e mostra onde ele mora. E ficou nisso. O Thiago me disse que pensou na hora que o que o homem mostrava não era uma casa. Perguntei para ele porque ele não disse que não achava que era uma casa. Ele disse que não falou nada porque respeita a ideologia do outro. Mas, para que essa ideologia apareça, é necessário que haja o confronto. O que os documentários estão evitando é o confronto. No Casa de Cachorro ainda, um entrevistado inverte a situação e pergunta ao documentarista "que porra de estudante você é?". Pois eu acho que o documentário só vai mudar de patamar quando o diretor perguntar "que porra de favelado você é?". Eu acho que só assim haverá diálogo, se não haverão apenas atitudes cerimoniosas.

Ismail Xavier: Sobre a questão do eu e do outro, eu acho que o que todos procuram nessa linha – e não vai uma antecipada crítica a isso, queria pensar melhor –, não se está procurando a alteridade, mas o universal. A forma como se aproxima desse dito outro, supõe o "nós" a partir de um presssuposto universal de humanidade, que tem de se manifestar e quando não se manifesta não rende. A idéia seria de evitar agressão, de evitar manipulação, mas, por outro lado, você cria uma situação na qual você vai produzir esse "nós" e o solo comum desse nós, a idéia de um diálogo e de um discurso aceitável, dentro de um decoro definido pelo cineasta. Parte-se do pressuposto de que existe uma medida comum à qual deve-se obedecer. A busca é por um campo onde se possa partilhar um certo senso de valores, mesmo que sejam reduzidos à pauta mínima, no sentido de produzir a cena. Voltando aos anos 50 e 60, existe essa idéia de que o olhar é uma forma de transformar o outro em objeto, o olhar é pôr em perspectiva, é fazer o outro entrar em meu campo, mas o olhar é mais como metáfora, porque existe outra maneira de colocar o outro em seu campo. Essa idéia de filmar o outro só com a consciência dele em relação à câmera está muito em pauta. Não estou dizendo que tem de romper com essa regra. Não estou fazendo convite a uma postura mais truculenta.

Jean-Claude Bernardet: Mas eu estou.

Ismail Xavier: É, ele está. Eu achei curioso que quando passou o filme do Michael Moore, nós, acostumados com o estilo do documentário brasileiro, vimos a quantidade de reclamações contra o tom provocativo da intervenção dele, do lado insolente dele... os próprios cineastas reclamaram. Houve uma manifestação, que não cheguei a ler, mas parece que o João Moreira Salles e o Coutinho se manifestaram com relação a uma restrição ao comportamento do Michael Moore, porque ele é realmente insolente e arrogante, agora, a coisa está aí e a partir daí se faz o documentário dele. Se ele fosse lá muito bonzinho conversar com o Charlton Heston... eu não sei. O problema é que o que está em pauta, sem querer idealizar o filme, porque nem é um filme que me seduziu, mas o que é curioso ali, é que existe essa idéia que não tem idéias em comum que estão acima dos valores que definem o conflito. Ele não estava querendo saber da humanidade do Heston porque para ele o conflito é mais importante que esse solo de humanidade que tem sido privilegiado nos documentários brasileiros.

Jean-Claude Bernardet: Qual é a diferença entre esse... solo de humanidade... de que você fala e simplesmente os bons modos?

Ismail Xavier: Não é só "bons modos", acho que vai além. "Bons modos" daria a impressão de que você estaria sendo portador de uma postura teatralizada no sentido de ser cínico e trabalhar deliberadamente com a etiqueta burguesa para evitar as relações de corpo que podem ser mais arriscadas. Você está fazendo uma lembrança da coisa dos bons modos.

Jean-Claude Bernardet: Mas é uma questão do corpo mesmo, quando o tal entrevistado do Thiago Villas Boas em Casa de Cachorro o pega, o abraça e o coloca contra si. Essa distância cerimoniosa envolve sim uma relação de corpo.

Ismail Xavier: Mas ele só fez isso depois de um hiato em que a possibilidade de conflito estava dada e o Thiago soube reagir, teve presença para perceber a situação e reverter no sentido de partilhar. Em geral, aquela situação é típica de quem já teve qualquer tipo de vivência de quem teve inversão de poder. Quando você está em uma inversão de poder, cabe a você se construir para lidar com a situação e transformá-la em cumplicidade que, se não for assim, pode ser muito arriscada.

Transcrição: Cleber Eduardo
Revisão: Fernando Verissimo