Jean-Luc Godard e Manoel de Oliveira


"O Vale Abraão", de Manoel de Oliveira, e "Infelizmente Para Mim", de Jean-Luc Godard, estréiam nas salas de cinema parisienses quase ao mesmo tempo, em setembro de 1993. Nessa ocasião, Godard pediu para realizar-se um encontro entre ele e Oliveira, para lançar uma discussão "científica" sobre os dois filmes. (Alain Bergala)

Jean-Luc Godard – Nenhum problema, o som alto é a única concessão que eu faço ao público. Você conhece a definição que Jules Renard faz da crítica? "O crítico é um soldado de um exército que perde a batalha, que deserta e passa para o lado inimigo. E quem é o inimigo? O público."

Manoel de Oliveira – E você, conhece o que Bergman disse dos críticos? "Certos críticos me parecem pernetas que querem ensinar o caminho."

Godard – Mas foi como crítico que eu pedi esse encontro. Mais do que brincar de autor, eu preferi ir ver alguém e falar do filme dele, e eventualmente, talvez, ouvir ele falar do meu. Se isso pode favorecer os dois de uma maneira publicitária, vamos fazer. O cinema é crítico da realidade, eu sou muito clássico desse ponto de vista, e como cineasta de língua francesa, eu sempre me sinto crítico de cinema. Uma das grandezas da França foi sempre ter tido um ponto de vista crítico, mesmo que ela nada saiba disso. Todos os críticos de arte foram franceses, desde Diderot, passando por Baudelaire, Élie Faure, Malraux, ou seja, pessoas, escritores ou não, que tinham um estilo. O mau crítico é aquele que não tem estilo. Nos Estados Unidos, só houve dois críticos: James Agee e (Manny, ndt) Farber de San Diego, que é aliás muito ignorado. Já que os nossos dois filmes estréiam ao mesmo tempo, então eis a primeira pergunta que eu queria fazer: O que se chama "lançar" um filme? Por que é necessário que eles sejam lançados? Nós temos uma dificuldade tremenda a fazer entrar nossos filmes em tal ou tal lugar, e depois há pessoas que não fazer um grande esforço mas que, em todo caso, fazem o que é necessário para lançar ("sortir", sair, ndt) os filmes.

Oliveira – Em português, não é a mesma palavra, nem o mesmo jogo de palavras. Não se diz "sair um filme". Mesmo assim, é uma questão que me importa. É importante porque para mim é preciso mostrar o filme. O filme não está terminado até o momento em que a crítica foi feita. Um bom crítico, inteligente, atento, sensível, é o representante dos espectadores, ele vai completar o filme que, na minha opinião, não está terminado quando eu o termino, ele vai completá-lo. Essa dinâmica entre o espectador e a tela é de fato essencial, ela faz parte do filme. Eu digo: o espectador, e não o público. O público é algo abstrato, o espectador é pessoal.

Godard – O público é o espectador existente. É o espectador comercializado, o espectador que compra seu ingresso, que torna-se público. Existe entretanto uma parte dele que permanece espectador como o leitor. Se aquilo de que nós falamos fosse um filme, digamos que o espectador seria o roteiro, e que o público seria a realização do espectador, sua encenação (mise-en-scène). Mas às vezes eu me pergunto: se os filmes não fossem vistos, muitos dos meus realmente não o são, ou o são mal-vistos, até mesmo por mim... Acho que se faz filmes para uma ou duas pessoas.

Oliveira – Mas é suficiente.

Godard – Verdade. Mas eu gostaria de voltar a essa história de lançar/sair um filme que não é somente uma questão de palavras, mas também é. Deveria haver pequenos dicionários que nos dissessem em cada língua as palavras técnicas do cinema. Por exemplo, a cópia de filme que vemos nas salas de cinema, a cópia com a imagem e o som, em francês dizemos "copie standard"

Oliveira – Em português (de Portugal) também, cópia standard ou cópia síncrone.

Godard – Em inglês, é married screen, em italiano copia campione. Eu insisto com as palavras porque, por exemplo, os russos não têm a mesma distinção que nós entre o documentário e a ficção. Os filmes com atores se chamam "filmes interpretados", e o documentário, não obrigatoriamente sem atores, se chama "filme não interpretado". A própria palavra imagem: para os americanos, não quer dizer grande coisa. Eles usam picture, ou seja, fotografia. Eles nem têm palavra para televisão, eles são diretamente comerciais, eles dizem network (rede, ou rede de trabalho, literalmente) .Se prestarmos um pouquinho de atenção na língua, quando dizem que um de seus filmes "sai" (é lançado), você tem a impressão de que você sai de fato ou que você já o fez sair?

Oliveira – Eu diria "sair" como se diz "sair com uma mulher", o que em português significa levá-la para a cama.

Godard – Agora, para os bons filmes, o lançamento (sempre "sortie", ndt) tornou-se "por aqui a saída", é uma maneira de livrar-se deles.

Oliveira – Nossos filmes acabam se tornando também filmes de festivais. Os festivais servem para mostrar a diversidade dos filmes a uma diversidade de públicos. É um contraste de diferentes realizadores, países, hábitos. É isso, mas isso não é tão mal assim.

Godard – Acho que você está descrevendo uma época passada, de que eu mesmo conheci o fim. Eu achava que era o começo e na verdade era o fim. Era uma época em que os festivais efetivamente ajudavam as pessoas a se encontrarem, a discutir sobre cinema, discutirem o que gostariam que ele se tornasse. Tudo isso mudou, o cinema mudou também. Agora, os cineastas reclamam de solidão, mas se eles não falam mais, se eles não discutem mais, é problema deles. Hoje, há cada vez mais festivais de cinema. Cada um, individualmente, tira o proveito que pode, tanto o mais potente como o mais fraco. Mas me parece, em geral, que o festival de cinema é feito para perpetuar a idéia do cinema tal como ela é importante para a mídia ou para a televisão, essa idéia do mito do cinema do qual Manoel viveu todo o século e eu vivi somente os dois últimos terços. Você, talvez, sinta uma diferença entre os anos 20, quando não havia festivais, e hoje?

Oliveira – O fenômeno novo é o das cinematecas, não como instituições – isso existe há muito tempo –, mas porque há cada vez mais espectadores. É o que acontece em Lisboa, eles vão na cinemateca ver filmes que não chegaram às salas de exibição. É interessante porque é preciso de fato gostar de cinema para ir vê-lo num cineclube ou numa cinemateca...

Godard – Essa história de encontro e diálogo, era isso que eu queria te dizer: como crítico, o que eu espero não é que me digam boas coisas, mas só tem gente que diz ou escreve: "Seu filme é terrível, é fantástico, é genial, é extraordinário!" Aí eu pergunto a elas: "É? O que é tão extraordinário?" E elas me respondem: "Ah! Oh!", eles não têm mais palavras, eles nem repetem "É extraordinário". Ao passo que se me fizer uma observação de que é muito fraco, que há erros, então eu acredito que existe aí uma chance para dialogar: será que você pode me dizer quais são os erros? É assim que testamos o fato de que hoje os críticos não querem mais falar e que os cineastas não gostam que os critiquem. Mas eu, que fui formado como crítico, a única necessidade que eu tenho verdadeiramente é que me digam: aquilo ali não está bom. Você tem necessidade que te digam "Aquilo não está bom", isso te incomoda? Porque eu tenho coisas a dizer sobre o que eu não gosto no seu filme mas eu não quero te indispor.

Oliveira – "Sou orgulhoso quando me comparo, sou humilde quando me consideram." É uma bela frase do seu filme.

Godard – São os santos que dizem isso, ou as pessoas honestas.

Oliveira – Eu sou pessimista. Quando alguém me diz que alguma coisa não funciona no meu filme, eu sinto. Com o tempo, entretanto, eu pensei ter me tornado insensível. Mas depende do lugar em que me atingem. Se eu tenho um machucado no punho e me atingem o bíceps, nada acontece. Mas se essa mesma pessoa bota o dedo na ferida, aí eu grito.

Godard – É preciso saber dizer o que é bom e o que é ruim. Não se trata de dizer o sentimento que se teve, mas fazer a crítica técnica ou científica do filme. Só a Nouvelle Vague disse isso. Ela disse: esse travelling é bom e eis aqui por que achamos ele bom em comparação com aquele diálogo que é ruim. Hoje, isso se perdeu completamente. A noção de autor ganhou uma tal importância que agora quando se faz um filme até o seu assistente não te diz mais isso. O único que às vezes tem um pouco de coragem de dizer isso, o único com quem eu tenho bizarramente uma relação artística, é o produtor. Porque o produtor colocou dinheiro ou ao menos arriscou o dinheiro dos outros, e em nome desse risco ele ousa me dizer: "Jean-Luc, isso não funciona." E eu digo "Ulalá!", e penso. Ao menos, tenho uma possibilidade de reflexão, me ancoro melhor. Se os cientistas são muito fortes hoje, é porque eles são os únicos que ainda trocam críticas. Um astrônomo diz: "Eu vi um eclipse da Lua, eu fotografei." O outro diz: "Então mostra a foto." Ele observa e constata: "Mas aqui dá pra ver a Lua! E você falava de eclipse?". E o outro diz: "Ah!, sim", ele fica abobado, mas ele recomeça. Existe um momento na arte, na crítica de arte, por exemplo entre Baudelaire e Delacroix, em que essa confrontação dos críticos deve acontecer. Senão, não avançamos. É a única coisa de que eu tenho necessidade, a crítica. E eu não tenho.

Oliveira – Eu tenho antes necessidade de meios para fazer filmes. Não sei nunca o que vai ser um filme. Tenho uma decupagem, tenho atores, cenário, mas não tenho filme. Durante a filmagem, a realização vai mudar a cada instante a configuração dessa nebulosa. O concreto aparece apenbas no momento em que eu vejo as tomadas do filme. Detesto ver as tomadas, porque sempre me sinto desolado.

Godard – Acho que isso sentimos todos. Acho que só Hitchcock ficava contente vendo suas tomadas. Então era isso que, como crítico, eu gostaria de dizer sobre o seu filme: de primeira eu embarquei com o filme e depois por um momento em me soltei, e logo depois comecei a pensar em alguma coisa. Eu pensei, ah, não é tão bom, e logo depois, ao mesmo tempo eu sonhava, pensava em Newton, na gravitação. Depois eu voltei a mim, e nesse exato momento, no diálogo do filme, alguém pronuncia a palavra gravitação. E aí eu falei para mim mesmo: finalmente, é um belo filme, é preciso que eu vá vê-lo de novo.

Oliveira – É efetivamente o tema do filme: a gravitação e as leis do peso.

Godard – De um ponto de vista mais científico, mais técnico, se eu tivesse sido assistente do seu filme, eu teria dito: "Você tem certeza, me explique melhor para que eu possa melhor assisti-lo, por que você pegou essa atriz para encenar Emma jovem (Cecile Sanz de Alba) e por que para Emma mulher você pega uma outra (Leonor Silveira) com uma diferença tão grande? Foi por vontade própria, aceito?" Essa é minha crítica: a segunda atriz não está à altura da primeira, ou ao menos, quando a segunda atriz aparece, o filme cai, é a gravitação. Depois volta.

Oliveira – A resposta é muito simples: no começo, eu escrevi o filme para a segunda atriz, Leonor Silveira. Essa mulher estava em estado de crise, de depressão. Meu produtor, Paulo Branco, tentou me dissuadir de escolhê-la. Existe, no livro O Vale do Abraão, de Agustina Bessa-Luís, o livro que eu adaptei, uma frase muito bonita que diz que os cabelos de Emma "caíam sobre o ombro como uma mancha de tinta negra". Para filmar essa frase, eu fiz pintar os cabelos de Leonor, que são loiros. Ela estava traumatizada com isso. A cena ficou ruim. Era preciso então encontrar uma outra atriz para encarnar Emma adolescente. Essa é a resposta técnica à sua crítica técnica. Eu queria acrescentar que um filme é sempre acompanhado de acaso e de sorte. É isso que me leva adiante: todos esses pequenos acontecimentos que aparecem no momento da realização. É um fenômeno que eu não entendo bem e que pode engendrar tanto o pior como o melhor. Não existe filme sem acaso. É uma criação, o filme é uma concepção de uma única pessoa, é muito difícil entrar nisso.

Godard – A criação pode ser preparada?

Oliveira – Pode ser preparada, mas não reparada. Como a vida. As coisas estão lá, esperando que nós as filmemos. O que você vai querer reparar? A fome, as crianças que morrem na África, sim, isso é importante, precisa ser reparado, merece o público mais vasto possível. Mas um filme não, é uma confusão tão grande que eu me sinto pequeno diante de mim mesmo. Dito isso, aceito a sua crítica a respeito do seu abandono do meu filme e sobre o retorno: é preciso ser muito sensível para poder entrar e sair do filme sem se perder. Efetivamente, é a lei da gravitação.

Godard – Eu acredito com muita modéstia que os cineastas da Nouvelle Vague fizeram cinema partindo do museu. Descobrimos o cinema na cinemateca. Nascemos lá. Claro, tínhamos visto Chaplin quando éramos menores, mas ninguém entre nós disse aos quatro anos de idade, "Eu vou fazer cinema" depois de ter visto Carlitos Bombeiro. Logo, eu sempre tive uma referência na cabeça. E eu penso assim que a obra tem mais importância que o homem. Não é algo evidente para todo mundo. A mulher faz obras abrigando homens. Tudo que o homem pode fazer para se encontrar em pé de igualdade relativa é fabricar obras: pintura, literatura ou política, guerras, desemprego, comércio. No fundo, o homem me interessa pouco. O homem Manoel de Oliveira me interessa pouco, Se nós habitássemos na mesma cidade, lado a lado, eu acredito que não encontraria com você mais do que estamos acostumados a nos encontrar. Claro, quando nos víssemos, falaríamos melhor dos filmes, mas não muito mais. O que me incomoda mais hoje é que os meios de comunicação desenvolveram a noção de personalidade antes da noção de pessoa. Na obra há a pessoa, ha pessoa há a obra. Há pessoas que não fazem obra, mas cuja vida, particularmente as mulheres, é uma obra. Os homens são forçados a fazer obras porque muitas vezes eles não fazem nada. Digo em coro com Buñuel, os filmes são o que existe de mais importante para mim. Mas se eu devesse pôr em jogo a vida de uma criança e o futuro de um filme, eu não hesitaria um segundo: a criança vem antes do filme.

Oliveira – Naturalmente. Sob esse ponto de vista, eu digo também que a arte não é tão importante.

Godard – Mas então se isso não é muito importante, não vale a pena fazer. As mulheres são mais lógicas, eles fazem na vida. Não estou certo que podemos dizer tão facilmente que a arte não é importante. Principalmente hoje quando não existe quase arte e muitas crianças que morrem. Isso quer dizer que deixamos viver muita arte e sacrificamos as crianças?

Oliveira – A arte não é o artista. O artista, a posição de artista, é a vaidade do homem. Essa maneira de expor a visão do mundo, de dizer: "Isso vai, isso não vai", uma efusão de vaidade. É o rés do chão. A arte é mais elevada, mais interessante que o artista. Um filme é sempre mais inteligente do que seu realizador, como diz Straub. Essa maneira que o realizador ou o artista tem de sair para se expor, diz respeito somente à vaidade.

Godard – É também uma atitude de criança: "Olha, mãe, fiz um desenho."

Oliveira – Sim, também, mas muitas vezes esse desenho é bonito também. Essa diferença entre a arte e o artista é também a diferença entre a História e a arte. A História mostra a evolução dos povos, das civilizações, dos sentimentos, do gosto. A arte exibe a substância dessas evoluções. Nós somos todos responsáveis, mesmo se, como realizador, eu nada possa fazer. Como realizador, eu só posso fazer uma coisa, realizar filmes. É tudo. Entretanto, o artista, no momento em que cria, ele tem sempre razão. É sua ficção, a interiorização.

Godard – Ah, eu não acredito, tudo está fora.

Oliveira – Sim, mas antes. Mas, depois, tudo entra na cabeça para sair de novo. Por exemplo, frente a Infelizmente Para Mim, eu estou diante do filme como uma esponja que vai aspirar tudo.

Godard – Não tenho certeza se essa é uma boa imagem. Claro, existe um lado espetacular e poético que é a missão profunda do cinema. Mas essa missão só se aplica se houver primeiro experimentação, verificação, trabalho, aquilo que podemos chamar de aspecto documentário de um filme. Existe isso nos grandes artistas, em você, em Pialat, em Anne-Marie Miéville, Straub, Cassavetes, Visconti, Rouch, pessoas muito diferentes, eu às vezes. Eisenstein, por exemplo, não há ninguém mais abstrato e estilista, ou até estiloso, do que Eisenstein. Entretanto, se hoje devemos mostrar planos da Revolução de Outubro, não é nos cinejornais da época que encontramos, ou mais exatamente os cinejornais se servem das imagens de Eisenstein sobre a Revolução de Outubro, imagens que foram completamente encenadas. Quando lemos o diário de filmagem de Nanook de Flaherty, que acreditamos ser um documentário, aprendemos que Flaherty pagou a seus esquimós, brigou com eles, os forçou a pescar peixes todos os dias mesmo que eles não tivessem vontade; ou seja, ele fez uma equipe de cinema com ele e foi um etnólogo formidável. Existe então todo esse lado documentário, essa forma, se não de conhecer perfeitamente a história do cinema, ao menos de ter o sentimento de que, para muitos, se perdeu hoje. É preciso ter esse sentimento da história do cinema, um pouco como Joyce, que tinha um sentimento profundo da história da literatura, e que sabia que, quando escrevia uma frase, certas de suas palavras tinham sido inventadas no tempo dos latinos, outras na Idade Média, e que ele, Joyce, no momento em que escrevia essa palavra, normalmente com toda essa bagagem e esse passado que ele sentia, ele estava na idade moderna da literatura, na sua idade adulta, se assim podemos dizer. No cinema, muito rápido, sob a influência americana que o mundo aceitou, uma parte desse trabalho documentário foi abandonada. Fomos para o espetacular de primeira, que era entretanto a missão final, digamos, a missa do filme. Nos filmes, hgoje, faz-se a missa, e depois a oração. Os grandes artistas, os artistas honestos, , fazem primeiro sua prece, e logo depois existe a missa, com o público, mais ou menos fiel. Os americanos regulamentaram a missa. O que importa para eles, na missa, é a coleta ("quête", que também quer dizer "busca", ndt): uma boa missa é uma missa em que a igreja está cheia, em que a coleta é grande.

Oliveira – A busca ("quête") é o tema de meu próximo filme.

Godard – Eu não faço busca ("quête"), mas pesquisas ("enquêtes"), me contento em ser um delegado. Eu registro as queixas. A crítica deve se exprimir sobre a oração, não sobre a missa. Sobre a missa, não se pode dizer nada. Ou então se diz: "Belo espetáculo, magnífico". A oração é um exercício também, é como o treinamento do esportista, os tons do pianista. Quando se é crítico, deve-se criticar os tons e o que podem dar esses tons.

Oliveira – O espetáculo e a missa não me interessam. O importante é a vontade de fazê-la. Você tem vontade de fazer cinema, eu tenho vontade de fazer cinema, como nesse momento eu tenho vontade de fazer xixi. Bergman dizia: "Eu faço filmes como alguns ingleses vão sozinhos caçar na floresta. Vestem-se, montam guarda com seu fuzil. Mas todas as manhãs, eles fazem a barba pelo seu próprio prazer." Eu acho isso muito bom. É preciso refletir sobre isso, sobre a vontade. Está em você, como um pintor que faz pinturas que ninguém vê, mas que não consegue impedir-se de fazer. A vontade é como uma flor magnífica que conduz sozinha ao coração da floresta virgem e que leva o desejo do fruto nela mesma, por ela mesma. Se ela encontra um olhar que a considera e que a julga bela, ela se realiza, ela se torna uma beleza notável e notada. mas muitas vezes esse olhar chega muito tarde, às vezes a floresta já foi queimada ou desmatada para ganhar terreno. Entre mim e você, há muitas diferenças, felizmente. Diferenças de língua, de país, de cultura. Você escolheu um cinema um pouco provocador e que destrói a ordem tradicional do relato. Você pesquisa a partir do caos, para imprimir desordem na ordem. Eu procuro colocar a desordem em ordem – inutilmente, reconheço –, mas eu pesquiso. Acredito que essa é a diferença entre nossos filmes: eu estou muito próximo do cinema em geral e você é um cinema particular.

Godard – Eu diria que fazemos a mesma coisa, mas que você consegue chegar lá e eu não consigo muito bem. Todo mundo, naturalmente, na imagem da ciência, parte do caos para colocar uma certa ordem. É essa "certa ordem" que é mais ou menos incerta, a qual se chega mais ou menos. Em momentos, não podemos, não conseguimos. Em Infelizmente Para Mim, é um pedaço de tempo que é extraído. Num outro filme, será outro pedaço. A partir de um pedaço, de uma foto, eu me faço um mundo. Vendo certos pedaços de seu filme, pensei em momentos do Van Gogh de Pialat, de que eu gosto muito. Para usar palavras simples como interior e exterior, mesmo se não faz muito sentido distingui-las, eu diria que Pialat, em seu Van Gogh, ficava no exterior, e entretanto ele só falava do interior. Ele estava mais para a tradição de Visconti, nesse aspecto. Você seria mais o contrário. Você permanece no interior. Ora, o interior, no cinema, não podemos mostrá-lo, só podemos senti-lo, mas ele não é visível, senão não é mais o interior.

Oliveira – Podemos filmar até a alma.

Godard – Isso. Quando eu era criança, diziam: a galinha é composta de interior e exterior. Quando tiramos o exterior, vemos o interior, e se tiramos o interior, vemos a alma. Eu ousaria dizer que você filma o interior de costas, mesmo que filmando as pessoas sempre de frente. O que num dado momento me incomodou no seu filme sendo dada essa aposta rigorosa e potente, é felizmente uma imperfeição ainda humana que faz com que você tenha ainda necessidade de fazer outros filmes. O que me incomodou foi que não houvesse visões de lado, que a câmera estivesse muito perto do projetor. A câmera não é feita para sempre coincidir com o projetor. O projetor transmitirá. É como o operador de raios-x. Ele não se contenta com uma chapa de frente, ele radiografa também de lado, de costas, na diagonal. Entretanto, no final, no momento da projeção, serão todas imagens planas. Sem dúvida, o que eu te digo aqui é uma imagem, mas nós somos pessoas de imagem. Isso não quer dizer que a c6amera deva se deslocar o tempo todo. É isso que faz com que, por momentos, no seu filme, haja buracos, o que os espectadores, os maus espectadores ou, dito de outra forma, o público de hoje, chama de "longo". Isso não quer dizer que eu reclame que um filme seja longo, eu fico até feliz que um filme seja longo se, no começo, eu percebo que há boas coisas. Eu posso cochilar tranqüilo, certo de reencontrá-lo. É isso que eu falo sobre ter uma discussão científica sobre um filme.

Oliveira – Eu coloco a câmera como você mesmo coloca, no lugar preciso em que eu acredito que ela deve estar. Por que ali e não aqui? Não sei por quê.

Godard – Seria interessante se se dissesse um pouco por quê.

Oliveira – A força vem da fixidez. Foi Bresson que me ensinou isso com O Processo de Joana d’Arc. Podemos também chamar isso de objetividade.

Godard – Eu tenho a impressão de que os cineastas, bons ou ruins, eles têm uma idéia, uma vontade, bom, e eles procuram pessoas com dinheiro suficiente para realizar essa vontade. Eles trabalham como uma pessoa que diz: essa noite, eu tenho vontade de comer espaguete à bolonhesa. Então o sujeito observa quanto dinheiro ele tem no bolso ou ele pede à sua mulher ou a um amigo para fazer espaguete à bolonhesa. Honestamente, eu sempre fiz o contrário. O produtor me diz: "Tem Depardieu, talvez seja o momento de fazer um filme com ele". Como não somos ricos, dizemos sim, sim, talvez ganhemos dinheiro logo depois. Depois, assinamos o contrato. Depois ainda é preciso fazer o filme, infelizmente para mim!

Oliveira – Eu faço exatamente o contrário. Eu me comporto como se o contrato estivesse já assinado. Eu escrevo a história, prevejo tudo, e depois no último momento o salvador chega, é o produtor. O Vale Abraão nasceu durante a montagem de Non, ou a Vã Glória de Mandar. A montadora me falava o tempo todo de Flaubert e, claro, de Madame Bovary. Era impossível filmar Madame Bovary na França, ainda mais com um realizador português. E além disse Chabrol estava prestes a fazer o seu. Pensei então que podíamos fazer uma coisa mais interessante: pedir à escritora Agustina Bessa-Luís se ela estaria disposta a escrever um livro a partir de Madame Bovary, um romance que em seguida eu adaptaria para o cinema. Ela aceitou. Precisamos esperar que ela o escrevesse, que ele fosse publicado. Para me apacientar, na ocasião do centenário de morte do escritor português Camilo Castelo Branco, rodei O Dia do Desespero.

Godard – Você diz: "Eu sei o que vai ser esse filme, mas eu não sei se vamos chegar a fazê-lo". Eu digo: "Eu sei que o filme vai se fazer, mas eu não sei que filme será". Não somente eu sei que o filme vai se fazer, mas além disso eu me engajei em fazê-lo, o que é pior. Porque eu tenho sempre medo de não fazer o próximo.

Oliveira – É também meu pesadelo.

Godard – Mas qual é a sua crítica do meu filme? Como um crítico culinário que diria: "Aqui, a carne está muito cozida, aqui está crua".

Oliveira – Um filme não é somente as imagens que vemos. As imagens são signos, os sons são outros signos, as palavras são outros signos ainda, que, todos, chamam outros signos, citam outras épocas, livros, filmes. Se não conhecemos esses signos e aquilo que eles chamam, não compreendemos o filme. A palavra é forte no seu filme, ela dá a força. A imagem tem uma outra força, que não tem nada a ver com a palavra. É bonito. Mas me falta alguma coisa para ter a compreensão completa do seu filme. O cinema é um ritual destinado a filmar rituais. O ritual do seu filme são as pessoas que passam entre os planos ou nos planos. Nós não conhecemos direito a significação desse ritual, perdemos o sentido deles. Por exemplo, em O Vale Abraão, o ritual do véu. Vemos a atriz levantar ela mesma seu véu na igreja no dia de seu casamento. Não compreendemos a impudência desse gesto se não conhecemos o ritual antigo dos casamentos arranjados que exigia que fosse o marido que levantasse o véu de sua esposa para descobrir-lhe o rosto pela primeira vez e testar assim sua sorte ou seu azar. É porque minha heroína sabe que é bonita que ela pode, muito descaradamente, levantar seu véu: olhe como sou bela! Se não conhecemos esse rito, perdemos o sentido dessa cena. Muitas vezes me escapa a significação dos ritos que estão no seu filme. Eu teria adorado que alguém me tivesse soprado na orelha. Você utiliza muito os efeitos, você provoca constantemente com os sons, com as palavras, com as imagens. É o seu modo, é um outro modo, nem bom nem ruim. Você o faz bem. Eu prefiro os filmes sem efeitos. Eu prefiro Alemanha Nove Zero.

Godard – Se não falamos muito bem inglês e vemos Hamlet, perdemos muitas coisas, mas sabemos se é bom ou ruim. Alemanha Nove Zero é igualmente composto de rituais e coisas destiladas.

Oliveira – Sim, mas se os signos são efetivamente tão incompreensíveis, eles são ao contrário mais nítidos e visíveis. O que eu gosto nesse filme é a clareza dos signos aliada à sua profunda ambigüidade. É aliás disso que eu gosto em geral no cinema: uma saturação de signos magníficos que se banham na luz de sua ausência de explicação. É por isso que eu acredito no cinema.

Godard – Então, muito obrigado.

(originalmente publicado no jornal Libération, dias 4-5 de setembro de 1993, e depois republicado em Godard par Godard, organizado por Alain Bergala, v.2, Éd. de l’Étoile, 1998. Encontro organizado por Gérard Léfort. Tradução de Ruy Gardnier)