Jean-Luc
Godard e Manoel de Oliveira
"O Vale Abraão",
de Manoel de Oliveira, e "Infelizmente Para Mim", de Jean-Luc
Godard, estréiam nas salas de cinema parisienses quase ao mesmo
tempo, em setembro de 1993. Nessa ocasião, Godard pediu para realizar-se
um encontro entre ele e Oliveira, para lançar uma discussão
"científica" sobre os dois filmes. (Alain Bergala)
Jean-Luc Godard
Nenhum problema, o som alto é a única concessão que
eu faço ao público. Você conhece a definição
que Jules Renard faz da crítica? "O crítico é
um soldado de um exército que perde a batalha, que deserta e passa
para o lado inimigo. E quem é o inimigo? O público."
Manoel de Oliveira
E você, conhece o que Bergman disse dos críticos? "Certos
críticos me parecem pernetas que querem ensinar o caminho."
Godard Mas foi como
crítico que eu pedi esse encontro. Mais do que brincar de autor,
eu preferi ir ver alguém e falar do filme dele, e eventualmente,
talvez, ouvir ele falar do meu. Se isso pode favorecer os dois de uma
maneira publicitária, vamos fazer. O cinema é crítico
da realidade, eu sou muito clássico desse ponto de vista, e como
cineasta de língua francesa, eu sempre me sinto crítico
de cinema. Uma das grandezas da França foi sempre ter tido um ponto
de vista crítico, mesmo que ela nada saiba disso. Todos os críticos
de arte foram franceses, desde Diderot, passando por Baudelaire, Élie
Faure, Malraux, ou seja, pessoas, escritores ou não, que tinham
um estilo. O mau crítico é aquele que não tem estilo.
Nos Estados Unidos, só houve dois críticos: James Agee e
(Manny, ndt) Farber de San Diego, que é aliás muito
ignorado. Já que os nossos dois filmes estréiam ao mesmo
tempo, então eis a primeira pergunta que eu queria fazer: O que
se chama "lançar" um filme? Por que é necessário
que eles sejam lançados? Nós temos uma dificuldade tremenda
a fazer entrar nossos filmes em tal ou tal lugar, e depois há pessoas
que não fazer um grande esforço mas que, em todo caso, fazem
o que é necessário para lançar ("sortir",
sair, ndt) os filmes.
Oliveira Em português,
não é a mesma palavra, nem o mesmo jogo de palavras. Não
se diz "sair um filme". Mesmo assim, é uma questão
que me importa. É importante porque para mim é preciso mostrar
o filme. O filme não está terminado até o momento
em que a crítica foi feita. Um bom crítico, inteligente,
atento, sensível, é o representante dos espectadores, ele
vai completar o filme que, na minha opinião, não está
terminado quando eu o termino, ele vai completá-lo. Essa dinâmica
entre o espectador e a tela é de fato essencial, ela faz parte
do filme. Eu digo: o espectador, e não o público. O público
é algo abstrato, o espectador é pessoal.
Godard O público
é o espectador existente. É o espectador comercializado,
o espectador que compra seu ingresso, que torna-se público. Existe
entretanto uma parte dele que permanece espectador como o leitor. Se aquilo
de que nós falamos fosse um filme, digamos que o espectador seria
o roteiro, e que o público seria a realização do
espectador, sua encenação (mise-en-scène). Mas às
vezes eu me pergunto: se os filmes não fossem vistos, muitos dos
meus realmente não o são, ou o são mal-vistos, até
mesmo por mim... Acho que se faz filmes para uma ou duas pessoas.
Oliveira Mas é
suficiente.
Godard Verdade.
Mas eu gostaria de voltar a essa história de lançar/sair
um filme que não é somente uma questão de palavras,
mas também é. Deveria haver pequenos dicionários
que nos dissessem em cada língua as palavras técnicas do
cinema. Por exemplo, a cópia de filme que vemos nas salas de cinema,
a cópia com a imagem e o som, em francês dizemos "copie
standard"
Oliveira Em português
(de Portugal) também, cópia standard ou cópia síncrone.
Godard Em inglês,
é married screen, em italiano copia campione. Eu
insisto com as palavras porque, por exemplo, os russos não têm
a mesma distinção que nós entre o documentário
e a ficção. Os filmes com atores se chamam "filmes
interpretados", e o documentário, não obrigatoriamente
sem atores, se chama "filme não interpretado". A própria
palavra imagem: para os americanos, não quer dizer grande
coisa. Eles usam picture, ou seja, fotografia. Eles nem têm
palavra para televisão, eles são diretamente comerciais,
eles dizem network (rede, ou rede de trabalho, literalmente)
.Se prestarmos um pouquinho de atenção na língua,
quando dizem que um de seus filmes "sai" (é lançado),
você tem a impressão de que você sai de fato ou que
você já o fez sair?
Oliveira Eu diria
"sair" como se diz "sair com uma mulher", o que em
português significa levá-la para a cama.
Godard Agora, para
os bons filmes, o lançamento (sempre "sortie", ndt)
tornou-se "por aqui a saída", é uma maneira de
livrar-se deles.
Oliveira Nossos
filmes acabam se tornando também filmes de festivais. Os festivais
servem para mostrar a diversidade dos filmes a uma diversidade de públicos.
É um contraste de diferentes realizadores, países, hábitos.
É isso, mas isso não é tão mal assim.
Godard Acho que
você está descrevendo uma época passada, de que eu
mesmo conheci o fim. Eu achava que era o começo e na verdade era
o fim. Era uma época em que os festivais efetivamente ajudavam
as pessoas a se encontrarem, a discutir sobre cinema, discutirem o que
gostariam que ele se tornasse. Tudo isso mudou, o cinema mudou também.
Agora, os cineastas reclamam de solidão, mas se eles não
falam mais, se eles não discutem mais, é problema deles.
Hoje, há cada vez mais festivais de cinema. Cada um, individualmente,
tira o proveito que pode, tanto o mais potente como o mais fraco. Mas
me parece, em geral, que o festival de cinema é feito para perpetuar
a idéia do cinema tal como ela é importante para a mídia
ou para a televisão, essa idéia do mito do cinema do qual
Manoel viveu todo o século e eu vivi somente os dois últimos
terços. Você, talvez, sinta uma diferença entre os
anos 20, quando não havia festivais, e hoje?
Oliveira O fenômeno
novo é o das cinematecas, não como instituições
isso existe há muito tempo , mas porque há cada vez mais
espectadores. É o que acontece em Lisboa, eles vão na cinemateca
ver filmes que não chegaram às salas de exibição.
É interessante porque é preciso de fato gostar de cinema
para ir vê-lo num cineclube ou numa cinemateca...
Godard Essa história
de encontro e diálogo, era isso que eu queria te dizer: como crítico,
o que eu espero não é que me digam boas coisas, mas só
tem gente que diz ou escreve: "Seu filme é terrível,
é fantástico, é genial, é extraordinário!"
Aí eu pergunto a elas: "É? O que é tão
extraordinário?" E elas me respondem: "Ah! Oh!",
eles não têm mais palavras, eles nem repetem "É
extraordinário". Ao passo que se me fizer uma observação
de que é muito fraco, que há erros, então eu acredito
que existe aí uma chance para dialogar: será que você
pode me dizer quais são os erros? É assim que testamos o
fato de que hoje os críticos não querem mais falar e que
os cineastas não gostam que os critiquem. Mas eu, que fui formado
como crítico, a única necessidade que eu tenho verdadeiramente
é que me digam: aquilo ali não está bom. Você
tem necessidade que te digam "Aquilo não está bom",
isso te incomoda? Porque eu tenho coisas a dizer sobre o que eu não
gosto no seu filme mas eu não quero te indispor.
Oliveira "Sou
orgulhoso quando me comparo, sou humilde quando me consideram." É
uma bela frase do seu filme.
Godard São
os santos que dizem isso, ou as pessoas honestas.
Oliveira Eu sou
pessimista. Quando alguém me diz que alguma coisa não funciona
no meu filme, eu sinto. Com o tempo, entretanto, eu pensei ter me tornado
insensível. Mas depende do lugar em que me atingem. Se eu tenho
um machucado no punho e me atingem o bíceps, nada acontece. Mas
se essa mesma pessoa bota o dedo na ferida, aí eu grito.
Godard É
preciso saber dizer o que é bom e o que é ruim. Não
se trata de dizer o sentimento que se teve, mas fazer a crítica
técnica ou científica do filme. Só a Nouvelle Vague
disse isso. Ela disse: esse travelling é bom e eis aqui por que
achamos ele bom em comparação com aquele diálogo
que é ruim. Hoje, isso se perdeu completamente. A noção
de autor ganhou uma tal importância que agora quando se faz um filme
até o seu assistente não te diz mais isso. O único
que às vezes tem um pouco de coragem de dizer isso, o único
com quem eu tenho bizarramente uma relação artística,
é o produtor. Porque o produtor colocou dinheiro ou ao menos arriscou
o dinheiro dos outros, e em nome desse risco ele ousa me dizer: "Jean-Luc,
isso não funciona." E eu digo "Ulalá!", e
penso. Ao menos, tenho uma possibilidade de reflexão, me ancoro
melhor. Se os cientistas são muito fortes hoje, é porque
eles são os únicos que ainda trocam críticas. Um
astrônomo diz: "Eu vi um eclipse da Lua, eu fotografei."
O outro diz: "Então mostra a foto." Ele observa e constata:
"Mas aqui dá pra ver a Lua! E você falava de eclipse?".
E o outro diz: "Ah!, sim", ele fica abobado, mas ele recomeça.
Existe um momento na arte, na crítica de arte, por exemplo entre
Baudelaire e Delacroix, em que essa confrontação dos críticos
deve acontecer. Senão, não avançamos. É a
única coisa de que eu tenho necessidade, a crítica. E eu
não tenho.
Oliveira Eu tenho
antes necessidade de meios para fazer filmes. Não sei nunca o que
vai ser um filme. Tenho uma decupagem, tenho atores, cenário, mas
não tenho filme. Durante a filmagem, a realização
vai mudar a cada instante a configuração dessa nebulosa.
O concreto aparece apenbas no momento em que eu vejo as tomadas do filme.
Detesto ver as tomadas, porque sempre me sinto desolado.
Godard Acho que
isso sentimos todos. Acho que só Hitchcock ficava contente vendo
suas tomadas. Então era isso que, como crítico, eu gostaria
de dizer sobre o seu filme: de primeira eu embarquei com o filme e depois
por um momento em me soltei, e logo depois comecei a pensar em alguma
coisa. Eu pensei, ah, não é tão bom, e logo depois,
ao mesmo tempo eu sonhava, pensava em Newton, na gravitação.
Depois eu voltei a mim, e nesse exato momento, no diálogo do filme,
alguém pronuncia a palavra gravitação. E aí
eu falei para mim mesmo: finalmente, é um belo filme, é
preciso que eu vá vê-lo de novo.
Oliveira É
efetivamente o tema do filme: a gravitação e as leis do
peso.
Godard De um ponto
de vista mais científico, mais técnico, se eu tivesse sido
assistente do seu filme, eu teria dito: "Você tem certeza,
me explique melhor para que eu possa melhor assisti-lo, por que você
pegou essa atriz para encenar Emma jovem (Cecile Sanz de Alba) e por que
para Emma mulher você pega uma outra (Leonor Silveira) com uma diferença
tão grande? Foi por vontade própria, aceito?" Essa
é minha crítica: a segunda atriz não está
à altura da primeira, ou ao menos, quando a segunda atriz aparece,
o filme cai, é a gravitação. Depois volta.
Oliveira A resposta
é muito simples: no começo, eu escrevi o filme para a segunda
atriz, Leonor Silveira. Essa mulher estava em estado de crise, de depressão.
Meu produtor, Paulo Branco, tentou me dissuadir de escolhê-la. Existe,
no livro O Vale do Abraão, de Agustina Bessa-Luís, o livro
que eu adaptei, uma frase muito bonita que diz que os cabelos de Emma
"caíam sobre o ombro como uma mancha de tinta negra".
Para filmar essa frase, eu fiz pintar os cabelos de Leonor, que são
loiros. Ela estava traumatizada com isso. A cena ficou ruim. Era preciso
então encontrar uma outra atriz para encarnar Emma adolescente.
Essa é a resposta técnica à sua crítica técnica.
Eu queria acrescentar que um filme é sempre acompanhado de acaso
e de sorte. É isso que me leva adiante: todos esses pequenos acontecimentos
que aparecem no momento da realização. É um fenômeno
que eu não entendo bem e que pode engendrar tanto o pior como o
melhor. Não existe filme sem acaso. É uma criação,
o filme é uma concepção de uma única pessoa,
é muito difícil entrar nisso.
Godard A criação
pode ser preparada?
Oliveira Pode ser
preparada, mas não reparada. Como a vida. As coisas estão
lá, esperando que nós as filmemos. O que você vai
querer reparar? A fome, as crianças que morrem na África,
sim, isso é importante, precisa ser reparado, merece o público
mais vasto possível. Mas um filme não, é uma confusão
tão grande que eu me sinto pequeno diante de mim mesmo. Dito isso,
aceito a sua crítica a respeito do seu abandono do meu filme e
sobre o retorno: é preciso ser muito sensível para poder
entrar e sair do filme sem se perder. Efetivamente, é a lei da
gravitação.
Godard Eu acredito
com muita modéstia que os cineastas da Nouvelle Vague fizeram cinema
partindo do museu. Descobrimos o cinema na cinemateca. Nascemos lá.
Claro, tínhamos visto Chaplin quando éramos menores, mas
ninguém entre nós disse aos quatro anos de idade, "Eu
vou fazer cinema" depois de ter visto Carlitos Bombeiro. Logo,
eu sempre tive uma referência na cabeça. E eu penso assim
que a obra tem mais importância que o homem. Não é
algo evidente para todo mundo. A mulher faz obras abrigando homens. Tudo
que o homem pode fazer para se encontrar em pé de igualdade relativa
é fabricar obras: pintura, literatura ou política, guerras,
desemprego, comércio. No fundo, o homem me interessa pouco. O homem
Manoel de Oliveira me interessa pouco, Se nós habitássemos
na mesma cidade, lado a lado, eu acredito que não encontraria com
você mais do que estamos acostumados a nos encontrar. Claro, quando
nos víssemos, falaríamos melhor dos filmes, mas não
muito mais. O que me incomoda mais hoje é que os meios de comunicação
desenvolveram a noção de personalidade antes da noção
de pessoa. Na obra há a pessoa, ha pessoa há a obra. Há
pessoas que não fazem obra, mas cuja vida, particularmente as mulheres,
é uma obra. Os homens são forçados a fazer obras
porque muitas vezes eles não fazem nada. Digo em coro com Buñuel,
os filmes são o que existe de mais importante para mim. Mas se
eu devesse pôr em jogo a vida de uma criança e o futuro de
um filme, eu não hesitaria um segundo: a criança vem antes
do filme.
Oliveira Naturalmente.
Sob esse ponto de vista, eu digo também que a arte não é
tão importante.
Godard Mas então
se isso não é muito importante, não vale a pena fazer.
As mulheres são mais lógicas, eles fazem na vida. Não
estou certo que podemos dizer tão facilmente que a arte não
é importante. Principalmente hoje quando não existe quase
arte e muitas crianças que morrem. Isso quer dizer que deixamos
viver muita arte e sacrificamos as crianças?
Oliveira A arte
não é o artista. O artista, a posição de artista,
é a vaidade do homem. Essa maneira de expor a visão do mundo,
de dizer: "Isso vai, isso não vai", uma efusão
de vaidade. É o rés do chão. A arte é mais
elevada, mais interessante que o artista. Um filme é sempre mais
inteligente do que seu realizador, como diz Straub. Essa maneira que o
realizador ou o artista tem de sair para se expor, diz respeito somente
à vaidade.
Godard É
também uma atitude de criança: "Olha, mãe, fiz
um desenho."
Oliveira Sim, também,
mas muitas vezes esse desenho é bonito também. Essa diferença
entre a arte e o artista é também a diferença entre
a História e a arte. A História mostra a evolução
dos povos, das civilizações, dos sentimentos, do gosto.
A arte exibe a substância dessas evoluções. Nós
somos todos responsáveis, mesmo se, como realizador, eu nada possa
fazer. Como realizador, eu só posso fazer uma coisa, realizar filmes.
É tudo. Entretanto, o artista, no momento em que cria, ele tem
sempre razão. É sua ficção, a interiorização.
Godard Ah, eu não
acredito, tudo está fora.
Oliveira Sim, mas
antes. Mas, depois, tudo entra na cabeça para sair de novo. Por
exemplo, frente a Infelizmente Para Mim, eu estou diante do filme
como uma esponja que vai aspirar tudo.
Godard Não
tenho certeza se essa é uma boa imagem. Claro, existe um lado espetacular
e poético que é a missão profunda do cinema. Mas
essa missão só se aplica se houver primeiro experimentação,
verificação, trabalho, aquilo que podemos chamar de aspecto
documentário de um filme. Existe isso nos grandes artistas, em
você, em Pialat, em Anne-Marie Miéville, Straub, Cassavetes,
Visconti, Rouch, pessoas muito diferentes, eu às vezes. Eisenstein,
por exemplo, não há ninguém mais abstrato e estilista,
ou até estiloso, do que Eisenstein. Entretanto, se hoje devemos
mostrar planos da Revolução de Outubro, não é
nos cinejornais da época que encontramos, ou mais exatamente os
cinejornais se servem das imagens de Eisenstein sobre a Revolução
de Outubro, imagens que foram completamente encenadas. Quando lemos o
diário de filmagem de Nanook de Flaherty, que acreditamos
ser um documentário, aprendemos que Flaherty pagou a seus esquimós,
brigou com eles, os forçou a pescar peixes todos os dias mesmo
que eles não tivessem vontade; ou seja, ele fez uma equipe de cinema
com ele e foi um etnólogo formidável. Existe então
todo esse lado documentário, essa forma, se não de conhecer
perfeitamente a história do cinema, ao menos de ter o sentimento
de que, para muitos, se perdeu hoje. É preciso ter esse sentimento
da história do cinema, um pouco como Joyce, que tinha um sentimento
profundo da história da literatura, e que sabia que, quando escrevia
uma frase, certas de suas palavras tinham sido inventadas no tempo dos
latinos, outras na Idade Média, e que ele, Joyce, no momento em
que escrevia essa palavra, normalmente com toda essa bagagem e esse passado
que ele sentia, ele estava na idade moderna da literatura, na sua idade
adulta, se assim podemos dizer. No cinema, muito rápido, sob a
influência americana que o mundo aceitou, uma parte desse trabalho
documentário foi abandonada. Fomos para o espetacular de primeira,
que era entretanto a missão final, digamos, a missa do filme. Nos
filmes, hgoje, faz-se a missa, e depois a oração. Os grandes
artistas, os artistas honestos, , fazem primeiro sua prece, e logo depois
existe a missa, com o público, mais ou menos fiel. Os americanos
regulamentaram a missa. O que importa para eles, na missa, é a
coleta ("quête", que também quer dizer "busca",
ndt): uma boa missa é uma missa em que a igreja está
cheia, em que a coleta é grande.
Oliveira A busca
("quête") é o tema de meu próximo filme.
Godard Eu não
faço busca ("quête"), mas pesquisas ("enquêtes"),
me contento em ser um delegado. Eu registro as queixas. A crítica
deve se exprimir sobre a oração, não sobre a missa.
Sobre a missa, não se pode dizer nada. Ou então se diz:
"Belo espetáculo, magnífico". A oração
é um exercício também, é como o treinamento
do esportista, os tons do pianista. Quando se é crítico,
deve-se criticar os tons e o que podem dar esses tons.
Oliveira O espetáculo
e a missa não me interessam. O importante é a vontade de
fazê-la. Você tem vontade de fazer cinema, eu tenho vontade
de fazer cinema, como nesse momento eu tenho vontade de fazer xixi. Bergman
dizia: "Eu faço filmes como alguns ingleses vão sozinhos
caçar na floresta. Vestem-se, montam guarda com seu fuzil. Mas
todas as manhãs, eles fazem a barba pelo seu próprio prazer."
Eu acho isso muito bom. É preciso refletir sobre isso, sobre a
vontade. Está em você, como um pintor que faz pinturas que
ninguém vê, mas que não consegue impedir-se de fazer.
A vontade é como uma flor magnífica que conduz sozinha ao
coração da floresta virgem e que leva o desejo do fruto
nela mesma, por ela mesma. Se ela encontra um olhar que a considera e
que a julga bela, ela se realiza, ela se torna uma beleza notável
e notada. mas muitas vezes esse olhar chega muito tarde, às vezes
a floresta já foi queimada ou desmatada para ganhar terreno. Entre
mim e você, há muitas diferenças, felizmente. Diferenças
de língua, de país, de cultura. Você escolheu um cinema
um pouco provocador e que destrói a ordem tradicional do relato.
Você pesquisa a partir do caos, para imprimir desordem na ordem.
Eu procuro colocar a desordem em ordem inutilmente, reconheço
, mas eu pesquiso. Acredito que essa é a diferença entre
nossos filmes: eu estou muito próximo do cinema em geral e você
é um cinema particular.
Godard Eu diria
que fazemos a mesma coisa, mas que você consegue chegar lá
e eu não consigo muito bem. Todo mundo, naturalmente, na imagem
da ciência, parte do caos para colocar uma certa ordem. É
essa "certa ordem" que é mais ou menos incerta, a qual
se chega mais ou menos. Em momentos, não podemos, não conseguimos.
Em Infelizmente Para Mim, é um pedaço de tempo que
é extraído. Num outro filme, será outro pedaço.
A partir de um pedaço, de uma foto, eu me faço um mundo.
Vendo certos pedaços de seu filme, pensei em momentos do Van
Gogh de Pialat, de que eu gosto muito. Para usar palavras simples
como interior e exterior, mesmo se não faz muito sentido distingui-las,
eu diria que Pialat, em seu Van Gogh, ficava no exterior, e entretanto
ele só falava do interior. Ele estava mais para a tradição
de Visconti, nesse aspecto. Você seria mais o contrário.
Você permanece no interior. Ora, o interior, no cinema, não
podemos mostrá-lo, só podemos senti-lo, mas ele não
é visível, senão não é mais o interior.
Oliveira Podemos
filmar até a alma.
Godard Isso. Quando
eu era criança, diziam: a galinha é composta de interior
e exterior. Quando tiramos o exterior, vemos o interior, e se tiramos
o interior, vemos a alma. Eu ousaria dizer que você filma o interior
de costas, mesmo que filmando as pessoas sempre de frente. O que num dado
momento me incomodou no seu filme sendo dada essa aposta rigorosa e potente,
é felizmente uma imperfeição ainda humana que faz
com que você tenha ainda necessidade de fazer outros filmes. O que
me incomodou foi que não houvesse visões de lado, que a
câmera estivesse muito perto do projetor. A câmera não
é feita para sempre coincidir com o projetor. O projetor transmitirá.
É como o operador de raios-x. Ele não se contenta com uma
chapa de frente, ele radiografa também de lado, de costas, na diagonal.
Entretanto, no final, no momento da projeção, serão
todas imagens planas. Sem dúvida, o que eu te digo aqui é
uma imagem, mas nós somos pessoas de imagem. Isso não quer
dizer que a c6amera deva se deslocar o tempo todo. É isso que faz
com que, por momentos, no seu filme, haja buracos, o que os espectadores,
os maus espectadores ou, dito de outra forma, o público de hoje,
chama de "longo". Isso não quer dizer que eu reclame
que um filme seja longo, eu fico até feliz que um filme seja longo
se, no começo, eu percebo que há boas coisas. Eu posso cochilar
tranqüilo, certo de reencontrá-lo. É isso que eu falo
sobre ter uma discussão científica sobre um filme.
Oliveira Eu coloco
a câmera como você mesmo coloca, no lugar preciso em que eu
acredito que ela deve estar. Por que ali e não aqui? Não
sei por quê.
Godard Seria interessante
se se dissesse um pouco por quê.
Oliveira A força
vem da fixidez. Foi Bresson que me ensinou isso com O Processo de Joana
dArc. Podemos também chamar isso de objetividade.
Godard Eu tenho
a impressão de que os cineastas, bons ou ruins, eles têm
uma idéia, uma vontade, bom, e eles procuram pessoas com dinheiro
suficiente para realizar essa vontade. Eles trabalham como uma pessoa
que diz: essa noite, eu tenho vontade de comer espaguete à bolonhesa.
Então o sujeito observa quanto dinheiro ele tem no bolso ou ele
pede à sua mulher ou a um amigo para fazer espaguete à bolonhesa.
Honestamente, eu sempre fiz o contrário. O produtor me diz: "Tem
Depardieu, talvez seja o momento de fazer um filme com ele". Como
não somos ricos, dizemos sim, sim, talvez ganhemos dinheiro logo
depois. Depois, assinamos o contrato. Depois ainda é preciso fazer
o filme, infelizmente para mim!
Oliveira Eu faço
exatamente o contrário. Eu me comporto como se o contrato estivesse
já assinado. Eu escrevo a história, prevejo tudo, e depois
no último momento o salvador chega, é o produtor. O Vale
Abraão nasceu durante a montagem de Non, ou a Vã
Glória de Mandar. A montadora me falava o tempo todo de Flaubert
e, claro, de Madame Bovary. Era impossível filmar Madame
Bovary na França, ainda mais com um realizador português.
E além disse Chabrol estava prestes a fazer o seu. Pensei então
que podíamos fazer uma coisa mais interessante: pedir à
escritora Agustina Bessa-Luís se ela estaria disposta a escrever
um livro a partir de Madame Bovary, um romance que em seguida eu adaptaria
para o cinema. Ela aceitou. Precisamos esperar que ela o escrevesse, que
ele fosse publicado. Para me apacientar, na ocasião do centenário
de morte do escritor português Camilo Castelo Branco, rodei O
Dia do Desespero.
Godard Você
diz: "Eu sei o que vai ser esse filme, mas eu não sei se vamos
chegar a fazê-lo". Eu digo: "Eu sei que o filme vai se
fazer, mas eu não sei que filme será". Não somente
eu sei que o filme vai se fazer, mas além disso eu me engajei em
fazê-lo, o que é pior. Porque eu tenho sempre medo de não
fazer o próximo.
Oliveira É
também meu pesadelo.
Godard Mas qual
é a sua crítica do meu filme? Como um crítico culinário
que diria: "Aqui, a carne está muito cozida, aqui está
crua".
Oliveira Um filme
não é somente as imagens que vemos. As imagens são
signos, os sons são outros signos, as palavras são outros
signos ainda, que, todos, chamam outros signos, citam outras épocas,
livros, filmes. Se não conhecemos esses signos e aquilo que eles
chamam, não compreendemos o filme. A palavra é forte no
seu filme, ela dá a força. A imagem tem uma outra força,
que não tem nada a ver com a palavra. É bonito. Mas me falta
alguma coisa para ter a compreensão completa do seu filme. O cinema
é um ritual destinado a filmar rituais. O ritual do seu filme são
as pessoas que passam entre os planos ou nos planos. Nós não
conhecemos direito a significação desse ritual, perdemos
o sentido deles. Por exemplo, em O Vale Abraão, o ritual
do véu. Vemos a atriz levantar ela mesma seu véu na igreja
no dia de seu casamento. Não compreendemos a impudência desse
gesto se não conhecemos o ritual antigo dos casamentos arranjados
que exigia que fosse o marido que levantasse o véu de sua esposa
para descobrir-lhe o rosto pela primeira vez e testar assim sua sorte
ou seu azar. É porque minha heroína sabe que é bonita
que ela pode, muito descaradamente, levantar seu véu: olhe como
sou bela! Se não conhecemos esse rito, perdemos o sentido dessa
cena. Muitas vezes me escapa a significação dos ritos que
estão no seu filme. Eu teria adorado que alguém me tivesse
soprado na orelha. Você utiliza muito os efeitos, você provoca
constantemente com os sons, com as palavras, com as imagens. É
o seu modo, é um outro modo, nem bom nem ruim. Você o faz
bem. Eu prefiro os filmes sem efeitos. Eu prefiro Alemanha Nove Zero.
Godard Se não
falamos muito bem inglês e vemos Hamlet, perdemos muitas coisas,
mas sabemos se é bom ou ruim. Alemanha Nove Zero é
igualmente composto de rituais e coisas destiladas.
Oliveira Sim, mas
se os signos são efetivamente tão incompreensíveis,
eles são ao contrário mais nítidos e visíveis.
O que eu gosto nesse filme é a clareza dos signos aliada à
sua profunda ambigüidade. É aliás disso que eu gosto
em geral no cinema: uma saturação de signos magníficos
que se banham na luz de sua ausência de explicação.
É por isso que eu acredito no cinema.
Godard Então,
muito obrigado.
(originalmente publicado
no jornal Libération, dias 4-5 de setembro de 1993, e depois republicado
em Godard par Godard, organizado por Alain Bergala, v.2, Éd. de
lÉtoile, 1998. Encontro organizado por Gérard Léfort.
Tradução de Ruy Gardnier)
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