A
carne da mentira:
A Última Tentação de Cristo
como um representante meu na tela

The Last Temptation of Christ, EUA, 1988

Aquilo que mais radicalmente me interessa no cinema é a mentira. A mentira
é meticulosa, é detalhista; a verdade é cheia de furos. Por isso mesmo,
a grande mentira do cinema é se fazer verdade. A mentira cinematográfica
é veriforme, por mais inverossímil que seja. Há algo ali, bem ali
no desvão entre a mentira e a verdade, que é meu termômetro, meu juiz.
Algo que me dá uma imensa coragem para olhar para um filme e me fazer
pretensioso o suficiente para dizer: cinema.
Por isso, me fascinam,
me tomam enormemente, os filmes que fazem mentira e verdade coexistirem.
Afinal, é o tempo a arena em que elas se digladiam. E é justamente este
o maior poder que o cinema tem a oferecer: o de construir uma realidade
em que o sentido do tempo não seja único, que a ditadura do sincrônico
seja rompida. No filme, tudo pode ser contemporâneo e eterno, ou seja,
tudo pode existir ao mesmo tempo desde sempre sem nunca acabar. E nada
também pode. A coisa é a descoisa, a anticoisa, podem ser
a mesma coisa, ao mesmo tempo.
É nesse sentido que
me considero representado em alguns filmes, dos quais poderia falar com
igual paixão aqui, pela mesma quantidade de negação à verdade que eles
apresentam. São filmes como O Espelho, de Jafar Panahi; Cidade
dos Sonhos e A Estrada Perdida, de David Lynch; ou Close
Up, de Abbas Kiarostami. Nenhum deles é meu filme mais amado ou o
filme que está no topo de minha lista de melhores. Nenhum deles é 8
1/2, de Fellini, o filme dos filmes, ou Blowup, de Antonioni,
a mentira perfeita. Eles são, na verdade, filmes essencialmente sobre
a própria mentira e sobre a verdade como sua manifestação mais falsa.
E são filmes em que esse jogo está na própria carne do filme, não só como
assunto, mas em que este problema mesmo se fez filme, como que em uma
aparição fantasmagórica, ou uma incorporação.
Por isso, A Última
Tentação de Cristo, de Martin Scorsese. Para isso, a cena do encontro
de Paulo e Jesus em uma praça, quase uma ágora helenista, próxima ao final
do filme. Ali, Jesus tenta desmentir Paulo, que narra aos outros como
ficou cego enquanto perseguia os cristãos e como foi salvo por... Jesus.
Ele, que havia morrido crucificado e ressuscitado ao terceiro dia. Ele,
que estava vivo ali, andando com sua mais de uma dezena de filhos. A história
e a anti-história se encontram. Mentira de Paulo? Afinal, Jesus está ali,
como prova viva de sua própria não morte. E Paulo está ali a afirmar que
não importa se ele ressuscitou ou não.
Mas não é mentira.
Jesus não morreu, foi salvo pelo anjo (que depois, descobriremos, é o
demônio e foi entregue a uma vida de recompensa por seus esforços). Mas
Jesus morreu, e ressuscitou. Na cruz, o tempo parou, ele desceu, casou-se
com Madalena, viu-a morrer e constatou que “todas as mulheres são uma
só”. Na cruz, ele morreu, e consumou sua história de salvação (que só
seria consumada depois).
A mentira essencial
de A Última Tentação de Cristo é tão poderosa que por vezes fica
invisível, acobertada pela capa de sobrenatural que traveste o filme.
Afinal, é uma obra sobre a vida de Jesus Cristo. Obra polêmica, por atribuir
humanidades insuspeitas ao “filho de Deus”. Mas descontado todo debate
religioso (que pode ser importante em vários planos e que, na verdade,
serve de sustentação para o jogo estrutural do filme) a dobra temporal
que o roteiro pratica sobre si mesmo é enormemente forte, enormemente
completo, e por isso mesmo, enormemente enigmático.
Isso porque é fácil,
ao final de A Última Tentação de Cristo, dizer que todo o bloco
da descida da cruz foi apenas “a última tentação de cristo”, ou seja,
que ela não passou da fantasia de um torturado à beira da morte; igualmente,
ela também aparece como viagem no tempo. A própria fala do/a anjo ao introduzi-la
conduz a essa desconfiança. Mas, ora, estamos falando do criador, do todo-poderoso
(seja ele Deus ou Scorsese). A operação não poderia ser tão simples.
Como não é simples
na opção de Scorsese por conferir àquele bloco estatuto não de parêntese
e sim de parte de fato de seu filme. Aquilo que acontece com Jesus acontece
de fato (no filme), ao mesmo tempo em que sua antítese também acontece
de fato. Há dois Jesus então? Há e não. Os dois são um, feitos os dois
de filme e de montagem. Os dois fazem parte de uma temporalidade única,
cuja lógica só existe no filme.
E essa temporalidade
é decalcada na própria estrutura do filme. Logo de imediato, na primeira
cena, um elemento de conflito se introduz na narração: é a voz de Jesus
que se posiciona como narradora, em primeira pessoa, como que a demonstrar
que aquelas ali são as memórias do próprio. Mas memórias a partir de onde?
De que lugar temporal ele se posiciona para lembrar uma história que,
todos sabemos, deve acabar com sua morte e ressurreição? A pergunta é
ainda mais capciosa se se reparar a força humana e nada transcendental
de sua fala, descrevendo como a sensação de perseguição pela presença
divina era opressiva.
Depois, entretanto,
essa mesma voz de narrador se fará uma voz de pensamento, no presente,
mas sem se fazer diferença temporal. Ao longo do filme, a voz presente
retornará, mas a de memória será apenas uma lembrança. A mesma confusão
se dá com a câmera, constantemente em trânsito entre ser um observador
distanciado, apenas cinéfilo, e um personagem mesmo da trama, a saber,
justamente o da presença divina que acompanha/persegue o personagem.
É que como em todos
os filmes de Scorsese, há um desejo de presença da câmera forte em A
Última Tentação. Scorsese é o diretor americano mais moderno de sua
geração. Em seu cinema, a câmera é uma presença revelada, desconstruída
e exibida (inclusive no sentido de se dar à exibição espetacular). Seus
planos nunca podem ser chamados de discretos, mais particularmente neste
filme.
E essa modernidade
se amplia nos jogos de paradoxo que o diretor impõe: à reconstituição
quase historiográfica de uma época ancestral, coloca-se todo um jogo de
expressão da contracultura, às vezes em um extremo hippie, às vezes no
extremo new age, como na cena do encontro com João Batista no Rio
Jordão ou nas tatuagens de Maria Madalena que parecem mais ter sido extraídas
de Hair; a uma sonoridade oriunda de pesquisa musical do Oriente
Médio e do mundo árabe, mistura-se a presença de guitarras e sintetizadores
de um Peter Gabriel sem que isso soe anacrônico; a uma história (ou pelo
menos sua versão tradicional) já exaustivamente narrada com cores de ópera
e teatro e com uma visualidade do mais clássico dos cinemas, impõe-se
uma filmagem não apenas invadida por movimentos rápidos e por vezes “desnecessários”
de câmera, como meticulosamente desenhada, com um desejo de expressão
a cada plano. Ao mesmo tempo que transporta fielmente para uma Palestina
do ano 33, o filme consegue poderosamente se denunciar como filme.
Uma outra seqüência
se mostra como uma forte síntese do filme: a da crucificação. Toda a seqüência
é um forte retomar de toda essa “modernidade” do filme. A câmera levemente
mais lenta, acompanhada por uma música de longas frases. A caminhada dolorosa,
que é observada por olhos expressivos de uma multidão que, mais do que
qualquer outra coisa, dá-se ao olhar. Os rostos em torno de Jesus parecem
tão torturados quanto ele, mas, diferentemente dele, que foi feito disforme
pelo açoite, as gentes que o rodeiam são descarnadas de humanidade, possuem
o sofrimento diário da pressão do tempo. O tempo é o antagonista maior
de A Última Tentação de Cristo. É contra ele que lutam cada um
dos personagens que acreditam no messias. E é justamente nessa luta que
o filme coloca seu enigma, seu decifra-me-ou-te-devoro. É justamente atrás
dele que corre Jesus. Ele quer o tempo, a história, a vida, não a eternidade
que a morte anunciada lhe promete. Bastante semelhante a Judas, seu companheiro
mais fiel e cego: ele quer a transformação histórica, não a a-histórica
da santa promessa.
A seqüência da crucificação,
aliás, para produzir justamente essa contradição e levar esse enigma ao
limite, faz da operação de silenciamento do filme um uso primoroso, por
mais ingênuo que isso seja. O efeito de atemporalidade obtido primeiro
pela câmera, que se move lentamente, e depois pela falta absoluta de som
é tão poderoso, tão sensorialmente expressivo, que faz lembrar o quão
experiência cognitiva (e não apenas intelectiva) o cinema nasceu para
ser. Pensamento e emoção em um mesmo corpo, A Última Tentação de Cristo
é a própria carne de sua mentira sobre o tempo. É na perda de conexão
sonora que se manifesta o desligamento do tempo. O tempo não pára quando
começa a ser trilhado em outro plano por Jesus. As pessoas no Gólgota
não deixam de viver a história de seu sepultamento, de sua continuidade.
E nem ele.
A aparição surpreendente
da figura andrógina que é o/a anjo, que parece nascer do olhar que Jesus
dá para baixo na cruz quando repara que algo está diferente, abre as portas
para um filme que resolveu fazer de seu clímax um anticlímax e se reinventar
como narração. O clímax ainda não está ali, embora a cena tenha alcançado
um grau de pressão dramática quase extenuante. O clímax está na contraposição
entre macronarrativa que micronarrativa que ainda se fará. O conflito
que se desenha desde o início do filme como uma oposição humano/divino
apresenta-se agora como uma oposição entre o duo natureza e tempo (apresentada
nos prados verdejantes, nos macacos que passam diante da casa, na sexualidade
revelada, no multiplicar de crianças) e o duo divindade e história da
salvação. O anjo, que se torna um novo narrador (em voz) e um novo observador
(em presença) se mostra como a prova do próprio estatuto dual que o filme
assume dali para frente. É uma a-história aquela história que Jesus está
vivendo, mas ela guarda uma ligação com a história que se passa lá fora,
como a seqüência final mostrará. Afinal, sobretudo do cinema, a mentira
tem pernas curtas. Apesar de ter carne nobre.
Afirmar que A
Última Tentação de Cristo é um filme que eu gostaria de ter feito
ou que faria é, claro, uma construção retórica. É claro que não se tratam
de condições racionais de produção. Mas é, como disse, mais o estatuto
de uma representação. O cinema por vezes nos fala alto por nos mostrar,
por nos dissecar na tela como se fosse possível nos conhecer desde sempre.
É nesse sentido que este filme sou eu. É nesse sentido que gostaria de
ter me encontrado antes dele. É nesse sentido que ele me representa, que
ele representa minha verdade.
Alexandre Werneck
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