Dogma do amor, de Thomas Vinterberg
It's All About Love, EUA, Japão, Suécia,
Inglaterra, Dinamarca. Alemanha, Holanda, 2003)
Ainda que
amar seja um privilégio humano, o fato é que o “filme de amor” de Vinterberg
não é propriamente um elogio à humanidade, tampouco um refresco para os
sentidos, o que, em primeiro lugar, já entrega uma de suas contradições.
Com imagens e temáticas que ora querem deslumbrar, ora querem simplesmente
apanhar pelo choque, Dogma do Amor consegue mergulhar num abismo
onde suas (dúbias) intenções saltam aos olhos do espectador de forma incômoda
e, por vezes, patética.
Ao viajar para um futuro próximo, o ano de 2021,
o filme no fundo busca tratar de questões que julga como urgentes: a falta
de afeto e comunicação entre os homens, o abandono dos países pobres,
as transformações climáticas do planeta, a discussão bioética em torno
da clonagem de humanos... Nenhuma novidade, decerto. Mas o futuro não
é trazido ao filme por meio de grandes especulações sobre prováveis mudanças
nas aparências do mundo: à exceção do uso antinaturalista da luz, o espaço
de hoje é filmado sem retoques. Afinal de contas, se a diegese é pertinente
ao planeta em processo de resfriamento dos vinte anos vindouros, o conteúdo
e a mensagem não dizem respeito senão ao presente: é um filme programado
para o agora imediato.
A estória que o filme nos conta começa bem simples:
após um ano e meio separado de Elena, uma famosa patinadora polonesa que
vive em Nova Iorque, John vai ao encontro dela para adiantar a papelada
do divórcio. Ao encontrá-la linda e frágil, precisando ainda dele, uma
nova luz se acende. Prato cheio para um belo filme de re-casamento, sem
precisar ir muito longe nem no tempo-espaço nem no tipo de abordagem,
certo? Para Vinterberg, errado: seu filme faz opções estéticas e narrativas
bastante confusas. Alguns planos parecem emulações canhestras de David
Lynch (personagens misteriosos que surgem do nada e entoam frases de efeito,
cenografia e iluminação intransigentes na sua tentativa de forjar composições
semelhantes às de A Estrada Perdida ou Cidade dos Sonhos),
mas nada do vigor lynchiano encontra espaço em Dogma do Amor; há
apenas a gratuidade de uma imagem demasiado escura e nebulosa, vacúolo
de criatividade, pasteurizações de fábrica. Certas seqüências dissimulam
o espaço e assumem o tom meio-fantástico/meio-freak de P.T. Anderson
(com direito a um enredo tão pouco envolvente quanto o de Embriagado
de Amor). E a maior parte do filme remete mesmo é ao Kieslowski filtrado
por Tom Tykwer em Paraíso (indubitavelmente o parente cinematográfico
mais próximo de Dogma do Amor).
A comparação entre os filmes de Vinterberg e Tykwer
não se limita à atmosfera, comum aos dois, de fábula adulta perpassada
por falas enigmáticas e metáforas visuais tão óbvias quanto piegas (à
pavorosa imagem do helicóptero filmado em contra-plongé subindo
até sumir no céu limpidamente azul de Paraíso corresponde o coração
desenhado no gelo do rinque de patinação em Dogma do Amor). São
filmes com visões de mundo bastante parecidas: em ambos pululam os clichês
da incomunicabilidade (diálogos truncados, indiferença e melancolia na
grande cidade), os comentários óbvios sobre a falácia da globalização
(é preferível não comentar as cenas que envolvem os “homens voadores”
de Unganda, mormente a imagem que encerra o filme de Vinterberg), a estilização
a todo custo (o que, pela ingenuidade do compromisso assumido com a bela
imagem, aquela que deverá ficar na memória e ser peça de antologia, chega
a irritar), os personagens sensíveis demais para um mundo tão embrutecido,
o sentimentalismo raso que se pretende justificado em causas nobres (o
amor, a aproximação entre os humanos – mas que meios nada sutis para demonstrá-las...).
Também o enredo guarda semelhanças nítidas: um casal que se protege da
hostilidade do mundo, um mundo no qual a afeição não encontra mais lugar,
porém esbarra em situações incontornáveis – são filmes extremamente negativistas.
Como esteta que se apresenta em boa parte das cenas
(isso vindo do diretor do dogma # 1, Festa de Família, mostra-se
claramente como inversão proposital), Thomas Vinterberg venera um sentimento
puramente humano e parece apontar tal condição como prevalência de valor
(enaltecer cultura, heroísmo, intelecto... em detrimento de animalidade
e barbarismo, como se fazia na antiguidade clássica), ao invés de limitação
(rebaixamento perante a divindade e a eternidade, como fizeram os medievais).
E eis aqui um senhor paradoxo, pois o filme, cujo próprio título original
(It’s All About Love) sugere uma exaltação incondicional do amor,
tanto deflagrará a culpabilidade e a transitoriedade do homem (o que traduz
uma concepção de humanitas bastante medieval – e há mesmo quem
diga que vive[re]mos uma nova Idade das Trevas) quanto se revelará altamente
pessimista. Mais do que isso: apocalíptico! A imagem do casal protagonista
John e Elena (Claire Danes sendo filmada com uma beleza cada vez mais
anti-séptica) morrendo abraçado e congelado não expõe o amor como tentativa
frustrada de salvação do mundo: aquela relação ficou ali preservada, guardada
no freezer, liberta em eternidade/validade, enquanto todo o resto (a cultura,
a civilização) degenerou-se e desaparecerá. Mero decadentismo. Defender
o amor e negar o mundo que está à sua volta? E que universo abriga esse
amor, que espécie de ser vivo o alimenta? Qual a lógica que separa o sentimento
puro do historicamente produzido, que decanta a essência do amor e condena
o abuso da imagem que o mundo criou em cima dele?
É que existe beleza em meio ao caos, como mais ou
menos diz o próprio personagem de Sean Penn (inscrição nada discreta do
autor no filme), que passa o tempo todo sobrevoando o planeta a bordo
de um avião, comunicando-se com seu irmão John pelo celular e soltando
pérolas que resumem Dogma do Amor com precisão assustadora. Descaramento
mesmo.
Mas alto lá! Tem música orquestrada grandiloqüente
ocupando a trilha sonora, a imagem é preparada com requintes fotográficos
dignos do mais luxuoso “cinema de arte”, os atores sussurram suas falas
que querem condensar a essência da vida (qual mesmo?) como se algo de
incalculável magnitude estivesse para acontecer mas as pessoas tivessem
de disfarçá-lo... Ou seja, em nenhum momento Dogma do Amor deixa
de admitir suas inclinações cool, de filme que sonha com uma paixão
quase infanto-juvenil sem querer abrir mão nem da estética de galeria
de arte grã-fina nem do universo do cult movie. É um filme em que
a pieguice busca o aval de um público supostamente refinado, mais exigente
que o público dos blockbusters, evidentemente. Mas fica difícil comprá-lo
desse jeito, difícil mesmo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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