O que seria um cult-movie político?
É aceitável supor que um discurso cinematográfico
é irônico? O que define essa ironia? Diz-se da ironia que,
se o ouvinte não entende, isso não se deve à sua
suposta falta de cultura – mas sim à má comunicação
de quem fala. Quem ironiza tem que se preocupar em ser entendido – ou
não? Todo mundo já deve ter passado pela situação
em que, num grupo, apenas uns poucos entendem uma determinada ironia –
outros entendem como afirmação séria aquilo que,
justamente, o discurso irônico tenta atacar.
O que faz um filme
ser irônico? É lícito supor que um realizador pretende
justamente o oposto do efeito imediato da sua narrativa? Por exemplo,
alguns dias atrás, numa discussão numa lista de cinema,
debatia-se Tropas Estelares – para alguns se trata de um filme
claramente fascista, para outros (eu incluso) se trata de uma grande ironia,
um deboche do cinema belicista. Como definir quem está certo ou
errado? O filme se resuma à vontade do realizador? Bem, mas se
é isso que nos resta, convenhamos, é bem pouco, quase nada...
Só nos resta construir nossos filmes – e, se os outro viram outros
filmes durante a mesma projeção, que viva a diferença!
O filme de Vinterberg
é ridículo, de forma até destemida, este é
um ponto em que concordo com detratores e até defensores, como
os colegas aqui da revista. Mas
por que será que parece tão... ridículo? Teria Vinterberg
intencionado falar do amor da forma tão disparatada e exagerada
que tem um discurso amoroso? O amor desbragado pode levar ao ridículo,
mas será que é mesmo por isso que o filme busca o tom que
tem?
Não, não
é essa a minha aposta, não foi esse o filme que eu vi. Isso
eu já vi em outros cantos, filmes, livros, canções.
Muita gente já usou o tom ridículo para falar do amor (desde
pelo menos a fala de Alcebíades no Banquete), até
mesmo no Festival do Rio passado havia um filme de Subiela que, no meu
ponto de vista, seguia justamente essa linha (O Lado Obscuro do Coração
2, ainda mais exagerado e sem medo do ridículo que o filme
de origem). Mas o filme de Vinterberg me parece usar o ridículo
por pura ironia, do início ao fim - o filme tem cara de ser um
deboche a certos cacoetes cinematográficos. Todo mundo vai lembrar
que Vinterberg fez parte do Dogma 95 - e o
que era o Dogma 95, senão uma tentativa de agredir o modelo de
filmes de festival que acabou justamente por ser absorvido e se
tornar a coqueluche dos filmes de festival? O que fez ele então?
Um filme que debocha de todos os excessos de um filme de festival!
Se não é isso, o que explicaria então o balé
no gelo de quatro Clares Danes, sob o foco de uns poucos spots de luz
e ao som de Una Furtiva Lacrima? E a história contada das
crianças congeladas em piscinas em Nova Delhi? E a tentativa permanente
do personagem de Sean Penn de entrar na trama, sem nunca conseguir? De
certa forma, ele lembra alguns personagens mal-situados e comentaristas
de certos filmes... E, sobretudo, o que seria o plano final senão
puro deboche? Tenho dificuldade em lembrar de uma imagem que seja, ao
mesmo tempo, tão impressionante e tão... ridícula!
(é uma imagem tão forte e bizarra que nenhuma explicação
daria conta – talvez seja o melhor motivo para se resistir às bobagens
do filme). É, para o bem ou para o mal, uma imagem inesquecível
– e é desde já, sem sombra de dúvida, uma das coisas
mais marcantes desse festival...
Nenhum adjetivo me parece tão cabível ao filme de Vinterberg
quanto ridículo. No entanto, há pistas aqui e ali
que indicam que a intenção é justamente essa – e
não é porque seria bonito ver balés ao som de árias,
mas justamente porque é preciso mostrar que é fácil
demais construir cenas ridículas que parecem bonitas. Se a intenção
era essa, o filme é plenamente bem-sucedido: evidenciou claramente
como é besta esse reino dos cult-movies. Se já não
o era antes, mais do que nunca se tornou (ridiculamente) cafona classificar
um filme de cult-movie. Talvez agora, pelo um caminho transverso
da ironia, Vinterberg tenha reencontrado um objetivo inicial ( que vai
além do marketing e, na verdade, põe-se até contra
este) do Dogma 95.
Ou seja: talvez, como
dizem algumas vezes no filme, as coisas não sejam o que parecem
(talvez sejam mais do que parecem), e o que finge querer ser bonito
talvez tenha, na verdade, intenção oposta. Isto pode
ser, digamos assim, uma ironia, ou não?
Enfim, o filme importa mais do que as intenções ao fazê-lo.
A tal história de amor me parece péssima. Mas, quanto ao
filme, pode-se ver nele um monte de problemas de alguns filmes atuais
- tendo sido essa a intenção de quem o fez ou não,
isso já não importa tanto.
Daniel Caetano
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