À Margem da Imagem,
de Evaldo Mocarzel
Brasil,
2002
O hábito não faz o
monge...
Derivado
manco do cinema de Eduardo Coutinho, À margem da imagem
sintetiza todo o perigo que a mera repetição de fórmulas
pode trazer ao documentário brasileiro hoje. Se a proposta de um
cinema documentário que se assuma como processo de interação
entre equipe e objetos-personagens aparece com força no cinema
brasileiro na década de 90, a absorção desse ideal
sem a habilidade e o estudo das condições práticas
de sua realização por cineastas afoitos, poder dar fruto
ao perigoso moralismo formal que norteia o filme de Evaldo Mocarzel.
Partir
de personagens excluídos e ouvi-los em depoimentos pessoais não
é, por si só, uma mágica para a realização
de um filme "ético". A ética no documentário (ao
contrário dessa bula mecanizada de atitudes em que quer se inserir
À margem da imagem), se expressa não apenas na relação
câmera-personagem, mas também da forma com que o filme compartilha
seu discurso com o espectador. Um pacto, um compartilhar dos afetos do
evento fílmico e não esse "dever moral" de respeitar o personagem
como um frágil bibelô. Esse cinema de depoimentos que quer
"dar a voz" aos excluídos faz parte de uma tradição
assistencialista cristã de um certo cinema brasileiro interessado
em tipificar nossas mazelas.
Explorar
a voz dos personagens como dispositivo para a argumentação
de que se está ouvindo diretamente a "realidade do povo" é
uma covardia discursiva abominável, chegando a ser mais perigosa
do que a tradicional narração interpretativa em off (ao
menos nessa, o Deus narrador não se disfarça, se impõe).
À
margem da imagem é um filme que peca pelo excesso de desejo
de beatitude, por querer parecer justo e correto como se seguisse
uma cartilha. Fingir mostrar os bastidores das entrevistas é uma
forma sorrateira de tentar passar a idéia de que o espectador está
vendo tudo, e mais: num filme que defende, unilateralmente, esse processo,
a coisa soa como uma auto-complacência constrangedora. "Veja só
como se faz", parece dizer o filme o tempo todo, esquecendo de resolver
algumas questões básicas para a realização
de um discurso que queira compartilhar com o público seu processo
construtivo.
O
território, por exemplo: filmar um sem-número de moradores
de rua de São Paulo e vendê-los como um retrato da "realidade
dos moradores de rua brasileiros" tentando estabelecer um painel representativo
de vozes sem sequer estabelecer um recorte, é uma das precariedades
mais básicas que esse tipo de filme pode ter. Se não há
apenas um tipo de morador de rua, como pôde o filme querer fazer
um retrato horizontal do tema? Sem sequer escolher um recorte geográfico
ou temporal passível de ser compartilhado com público e
personagens?
Pior:
fazer perguntas sobre o que os personagens "acham" de termas gerais como
"política" é um dos movimentos mais cruéis, mais
hipócritas que se pode ver numa tela de cinema por ignorar toda
a especificidade da fala diante da câmera e das condições
do filme como espetáculo efêmero e não apenas "veículo".
Nesse sentido, o filme perde a possibilidade de se expressar como fabulação
de identidades para querer ser trampolim multiplicador de discursos populares...Esse
orgulhoso dom de "dar a voz" não passa de um derivado insosso de
um contra-jornalismo que quer incluir vozes geralmente não ouvidas
nos noticiários diários, como forma de contra-afirmação
recalcada da "realidade". A forma como o filme mostra as "opiniões"
dos personagens ao final em relação ao próprio filme
cai novamente na farsa de querer dar um aval "espontâneo" ao bom
trabalho realizado pela equipe, ignorando mais uma vez a diferença
entre os depoimentos evocativos e afetivos de um cinema como o de Coutinho
e esse joguinho de "opiniões" onde a voz dos personagens é
manipulada como novo oásis para a descrição da verdade.
No
mais, restam aqui e ali alguns bons personagens, a coerente opção
pela ausência de trilha sonora, mas nada muito além disso.
Se certa vez eu escrevi sobre a "praga" de seguidores de Eduardo Coutinho
no meio do curta-metragem em video (Ver Plano Geral, Edição
34), esse fenômeno desgovernado do qual Coutinho é o menor
responsável, parece ter alcançado em Mocarzel um de seus
efeitos mais claros no longa-metragem. A entrevista, o diálogo
(como estabelecido no tabuleiro ético de Coutinho) funciona apenas
como uma das possibilidades práticas de interação
(uma dietética concreta de atitudes imanentes do filme, e não
essa lista de postulados essencialistas...), que podem trazer ao cinema
a fabulação espontânea de nossas identidades multiplicadas
através da fala. O diálogo câmera-personagem-público
como artifício catalizador de máscaras e encenações
de identidades, e não um atalho para uma suposta vida-em-direto.
Não esse exercício de culpa de Evaldo Mocarzel, mas a celebração
do encontro como possibilidade do novo e do outro.
Essa
é a percepção e a proposta estética que À
margem da imagem prefere deixar de lado para se vangloriar de seus
bons modos, de suas boas intenções, de sua moral inabalável
(e orgulhosamente ciente de seus pecados). Um filme que veste a carapuça
de uma suposta Ética, mas se esquece de transformá-la em
dinâmica narrativa e discursiva (quais personagens, em que território,
durante qual período de tempo – por Deus, onde pode haver ética
se ela é uma imposição unilateral?), transformando-a
muito mais em novo objeto de exploração temática.
Fraco, muito fraco.
Como
já disse e repito: um filme que quer poder vestir o hábito
antes de se tornar um monge.
Felipe
Bragança
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