Alila, de Amos Gitai
Alila,
Israel/França, 2003
Alila começa num carro. A câmera, no banco de trás,
filma uma conversa de pai e filho, enquanto o carro percorre as ruas de
um pitoresco bairro de Tel Aviv. Por vezes, a câmera faz 90º à
direita para registrar alguma boate ou local com música (o som,
nesse momento, sobe e invade a conversa dos ocupantes do carro e silencia
a música do rádio do carro). Pouco depois, a voz de Amos
Gitai, o próprio, anuncia os atores e a equipe técnica do
filme. A seqüência se acaba no mesmo plano, mas fora do carro:
enquanto o pai tenta contratar imigrantes chineses – e, logo, trabalhadores
ilegais – para uma construção, o filho aproveita a "lição"
de barganha do pai para fugir e nunca mais ser visto. Em outra parte,
mas ocupando um quarto contíguo, dois amantes fazem amor ruidosamente.
Gabi, a mulher, interpretada pelo furacão Yael Abecassis (já
vista em Kadosh – Laços Sagrados), se submete a uma relação
em que deve apenas esperar pelo chamado de seu amante (casado), mesmo
que demore semanas. Uma policial arruma briga com os colegas de condomínio
porque deseja adicionar um quartinho a seu apartamento, sem permissão
legal. Uma série de apartamentos, um do lado do outro, que permite
a Amos Gitai realizar um filme-painel um tanto apocalíptico sobre
a dificuldade das relações humanas numa Israel em estado
de guerra.
Alila é
tudo menos um filme fácil de encaixar em rótulos. Para seu
diretor, é uma comédia, mas embora tenha alguns momentos
realmente um tanto exagerados, o sentimento mais comum é o de estranhamento
e dor pelas vidas amarguradas que ocupam os quartos e as redondezas daquele
condomínio. Para os mais interessados por política, pode
parecer simplesmente um teatrinho encenando no micro um panorama macro
das opiniões referentes à posição de Israel
diante do povo palestino. Para os aficionados unicamente pelo aspecto
estético de Gitai, é mais uma exploração do
plano seqüência, aqui levado às últimas conseqüências
(de lembrança, apenas uma cena é resolvida em mais de um
plano).
No entanto, o filme
de Gitai é bem mais do que tudo isso, para bem e para mal. Tanto
pior para suas pesquisas com o plano: a despeito do grande trabalho de
Renato Berta, os mirabolantes movimentos de câmera que volta e meia
passam do interior para o exterior do condomínio ressoam mais fetichistas
do que virtuosos, mais efeito de estilo do que interação
com o que acontece (e maneirismo conteudista ainda não é
uma categoria existente ou possível). Problema que cresce desde
Kippur, passa por Éden e sobretudo por Kedma
(e atinge o ápice no intolerável episódio para o
filme 11 de setembro), o fetiche pelo plano seqüência
acaba engessando o tempo de seus filmes, fazendo-os pesar mais do que
mereceriam. Num filme que se quer cômico – ou, em todo caso, mais
leve do que os anteriores –, esse peso acaba demolindo boa parte de bom
humor possível, mas cria um adicional de estranheza que pode por
vezes garantir passagens interessantes.
Se o filme não
consegue vencer nem por seu lado "esteta" nem pelo microcosmo
político e tampouco pela experiência de comédia, em
que Alila torna-se um filme vitorioso? Diríamos de primeira:
pelo próprio painel que constrói. Nesse painel reside a
grande força política de Amos Gitai: não vemos aí
os típicos quase-heróis positivos de seus filmes, muito
menos ideologias que saem da boca de seus personagens (sempre Kedma).
Vemos uma Israel construída por imigrantes iranianos, europeus
do leste, asiáticos ilegais (os construtores) ou legais (a empregada
do síndico), formando um panorama muito mais complexo do que aquele
que supomos (todos judeus sionistas sangrentos apoiando a destruição
dos palestinos). Claro, todos esses imigrantes têm problemas de
convivência com os "autóctones" (porque falar em
autóctone em Israel é algo de complicado, todos são
em alguma medida imigrantes), mas os próprios autóctones
têm problemas em conviver com os outros (e até consigo próprios).
Alila parece
um pouco com Yael Abecassis, essa atriz que interpreta uma mulher que
tenta viver um amor impossível se rebaixando às regras egoístas
e sádicas do amante: há nela algo de inapoderável,
uma resistência profunda mesmo que submissa aos desejos mais espúrios
de seu parceiro, um mistério primeiro que subsiste a toda caracterização
que podemos fazer dela. Não à toa, a grande cena do filme
pertence a ela: numa grande torrencial, enquanto parte do condomínio
tenta salvar seus móveis do dilúvio e outra parte comemora
a desgraça alheia, ela fecha os olhos, se deixa molhar pela água
da chuva e se posiciona de forma hierática, meta-religiosa, para
senti-la molhar o rosto e a camisa. Instante purificador para ela (que
estará doravante livre para perseguir um novo amor) e para o filme,
momento utópico que clama um antídoto para todas as rusgas
nas relações interpessoais (e, por extensão, às
rusgas políticas entre governo israelense e povo palestino). Alila,
filme "em férias" na relação com a história
israelense tal como vinha sendo contada por Amos Gitai, acaba se revelando
como um dos melhores de seu realizador.
Ruy Gardnier
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